Encara-se amiúde a ética como se fosse a soma das normas a serem observadas pelo agir humano. (…) A ética seria um código de todos os ideais humanos, uma resposta pormenorizada à pergunta: “O que é bom?” Tal ciência, porém, é impossível. Não pode haver resposta geral a essa pergunta. Com efeito, a ação ética é um produto do que se manifesta no indivíduo; nunca é dado de forma geral, mas sempre em casos isolados. Não existem leis gerais sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer. (…) Um direito natural geral que fosse válido para todos os homens e todos os tempos é um absurdo. (…) Não se pergunta: O que deve o homem fazer? Mas sim: Qual é a essência íntima daquilo que o homem faz? Desta forma, desmorona a barreira que divide toda ciência em duas esferas: a doutrina do que é, e aquela do que deveria ser. Como qualquer outra ciência, a ética é uma ciência daquilo que é. (…) Mas no agir humano não pode existir ciência: pois ele é incondicionado, produtivo, criador. A jurisprudência não é ciência, mas apenas uma coleção de anotações dos costumes jurídicos próprios à individualidade de um povo.
STEINER, R. A Obra científica de Goethe. São Paulo : Antroposófica, 1980. p.151-2
A “ética” tomou uma conotação “transcendental”, religiosa e normalmente é utilizada quando se deseja chamar a responsabilidade de alguém perante valores mais nobres ou quando se deseja se proteger debaixo de uma capa de “moralidade” perante o outro. Assim ela é relacionada a um código pré-estabelecido de normas e condutas que deveriam vigorar em todos os âmbitos das vidas individual, política, científica e econômica. No entanto essa postura corresponde a uma visão apoucada do profundo significado do que essa palavra significa.
Este artigo deseja traçar um caminho “pensamental” de esclarecimentos sobre os significados das palavras “ética” e “moral”, no sentido de resgatar a verdade. Visa-se ser coerente com a sabedoria que emana como eco de tempos primordiais, para casar com a autenticidade que se deve praticar nos dias atuais. Isso se faz necessário porque, muitas vezes, de uma palavra, mesmo bastante conhecida, devido ao seu uso constante, se perde a etimologia, o real significado. Acaba-se por “cristalizar” anacronicamente pensamentos (e atitudes), baseados em observações distorcidas.
Aristóteles classifica as ciências em: teóricas, práticas e produtivas. Entre as “ciências práticas”, encontram-se a ética e a política, por exigirem uma práxis, um atuar em direção ao outro ser humano. Nesse caso, o homem é o próprio agente da ação cuja finalidade é atingir o outro, na busca de “um bem” (individual ou coletivo), sendo que a “ética aristotélica” enfatiza a virtude e a contemplação. Essas duas características estão também estampadas na “ética spinozista” (de Baruch Spinoza), sobre Deus e alma/corpo. Já na “ética tomista” (de Tomás de Aquino), essas qualidades tomam colorido mais humano: Assim como existem muitos “seres”, também existem muitas formas de “bens” particulares. A cada “ser” corresponde uma espécie de “bem”, próprio e determinado, que se identifica com sua possível perfeição. Nesse sentido, a ética almeja atingir a plena realização de sua essência. (Ou seja é um caminho de auto-realização). E a “ética steineriana” (de Rudolf Steiner, autor da citação acima), reforça esse caminho evolutivo humanístico: A ação ética é um produto do que se manifesta no indivíduo. Por isso se denomina “individualismo ético”.
Portanto, como se está vendo, não tem cabimento traçar códigos ou normas para pessoas (ou profissionais), quando um impulso ainda se situa na esfera da “intenção” (seja um “bem” ou um “mal”). Nessa esfera ainda se situa no âmbito do “individualismo ético”. Um ser só pode ser julgado ou se torna passível de julgamento, depois de ter realizado um ato ou uma ação. Os códigos penais sabem muito bem disso. Neste caso já não se fala mais em ética, mas em moral. Por isso é incorreto dizer: código de ética profissional, código de ética médica, código de ética jurídica, ética profissional, ética médica, ética jurídica, socioética, bioética, ética global, comissões de ética, etc. Por isso é preciso repetir mais uma vez: A ética corresponde a uma espécie de “bem”, sendo este próprio e determinado pelo indivíduo.
A moral sim, nasce de posturas externas, que se traduzem no “viver social” (política) e no “ato de produzir e consumir” (economia). Ela tem origem no período romano, na observância de códigos e leis comunitárias, traçadas pelo Senado e pelos Comícios (assembléias populares). Nesse sentido, ela se cristaliza em jurisprudência, pois corresponde a coletânea de normas (códigos) próprias de um povo (ou das mais variadas profissões). Por isso as “ações morais” são tão variadas e numerosas quanto as possibilidades de atuações do ser humano no mundo. Esta a razão por que se deve ser coerente com a evolução histórica e assumir a “verdadeira” terminologia: código moral profissional, código moral médico, código moral científico, código moral jurista, moral profissional, moral médica, moral jurídica, moral social, moral científica, moral econômica, moral estatal, moral ecológica, moral tecnicista, moral cibernética, moral biotecnológica, moral global, comissões de moralidade em pesquisa, etc.
Nada impede de se denominar, por exemplo, “ética social”, desde que se compreenda o significado profundo dessas duas palavras conjugadas: “indivíduo” em relação recíproca à “coletividade”. Este pensamento de Steiner poderá esclarecer melhor: “Salutar só é quando, no espelho da alma humana, se forma a comunidade inteira. E, na comunidade, vive a força da alma individual. Eis o princípio da ética social”. Totalmente diferente se se apreende do consagrado termo “bioética”, produto típico da cultura “made in USA”, cujos problemas dizem respeito “à justiça, à distribuição de recursos na área da saúde, aos princípios de autonomia e de solidariedade”. Enfim, uma mistura ampla de vários aspectos técnico/científico/sociais, que dizem muito mais respeito a qualidades morais (exteriores, políticas) do que à verdadeira ética (qualidade interior). Poderia muito bem ser denominada de “moral biotecnológica” ou biotecnomoral.
Ética e moral são, em realidade, duas faces da mesma moeda, pois uma está voltada para o interior e a outra se volta para o mundo. Nesse sentido, precisa-se que se desenvolva a ética (o indivíduo) e se exteriorize a moralidade (para o mundo). Essas são as qualidades superiores a serem “treinadas” pela (auto-)Educação e pela Cultura, respectivamente, como habilidades para o justo relacionamento entre o Eu (individualismo ético) e o mundo (viver moral em “comunidade de vida”: familiar, conjugal, social, profissional, ecológico). Ou seja, é a ética que se projeta nas práticas da política (viver na pólis) e da economia (atuar no mundo profissionalmente).
Como a ética se transforma em moralidade? Antes de responder, é preciso entender como o “pensar” se transforma no “agir”. É sabido que, ao se tentar explicar um fenômeno natural, precisa-se remontar às suas origens, para descobrir o que produziu aquele efeito. O mesmo não acontece na atuação humana, pois aí a “causa” e o “agir” são uma coisa só. Não existe separação entre a idéia e o agir. (Isso se denomina de monismo). No mesmo tempo em que se pretende realizar um ato, já se está realizando-o. Por isso ocorre a unidade do “pensar” com o “atuar”. No ato de falar, andar, fazer algo, o homem (a idéia) já se manifesta diretamente no palco da sua atuação. O agir humano se determina a si mesmo. O movimento nasce de dentro do ser humano como qualidade intrínseca. Portanto, para ser congruente com a assertiva acima, é preciso entender que o nervo é somente sensitivo (aferente e eferente). A atuação motora fica a cargo da “essência espiritual”, que mexe o corpo através da “substância química”(*). É infantil afirmar que a “substância” pensa, sente ou atua. Ela é apenas a intermediária (sub+instância, o elemento inferior terrestre, que se torna receptivo à influência “superior”) e está presente na “placa motora” dos músculos e dos órgãos. “A atuação motora é exercida pela alma” (De Anima, Aristóteles). É o interior (a ética) que se realiza no mundo pelo agir humano (o qual se cristaliza como moral). Por isso no agir (fazer, atuar, querer), se é “livre”, produtivo, criador, pois é o “íntimo do indivíduo” (o espiritual, a ética) que mergulha na corporeidade. O agir humano surge como continuação da atuação do que existe no pensar. O “agir”, portanto, é a idéia se manifestando no mundo. (Repetindo Steiner: Na ética, vigora a ciência daquilo que se é; no agir, vigora a liberdade de criação e não existe ciência). Ou seja, vigora o MONISMO e, dessa forma, desmorona a barreira que divide toda ciência atual em duas esferas (dualismo): a doutrina do que é e aquela do que deveria ser.
Vamos à resposta (como a ética se transforma em moralidade na sociedade e no mundo?). Em 1o lugar, o ser humano tem que ser visto com um ser natural, que precisa satisfazer ao seu impulso anti-social de subsistência física. Ele retira da natureza uma parcela para o seu sustento, para o seu “consumo”, em detrimento dos outros. Caso hipertrofie essa característica, ele imprime essa influência maléfica: na sociedade (como poderoso), na esfera estatal (como imperialista) e na economia (como consumista). Em 2o lugar, como “ser espiritual”, o homem precisa ensimesmar-se no seu lado associal. Isso ocorre quando ele estuda, medita, pensa, investiga as coisas. Denomina-se individualismo ou liberalismo. Caso se hipertrofie essa característica “egoística”, impõe aos outros o seu ponto de vista: na sociedade (como ditador), na política (como estatizante) e na economia (como neoliberal). No entanto essa esfera individual corresponde à ética e precisa ser cultivada pela Educação, como se comentou. Em 3o lugar, o impulso social, tem a ver com o viver com os outros em comunidade e é representado pela vida do direito. E o direito existe desde que existe a convivência comunitária. Como “a pólis é anterior à família e a cada um de nós” (Aristóteles), o “direito” existe desde os primórdios, porque os homens nasceram juntos. Por isso o homem é um “ser político” por excelência, por habitar uma pólis. Portanto chega-se à conclusão de que o direito coincide com o social e, quando encontra um reconhecimento geral, condensa-se na legislação (nas leis).
É o impulso social (através da atuação moral), como se pode perceber, que metamorfoseia as características dos outros dois impulsos: o indivíduo associal (egoísta) passa a acolher o outro em si e faz brotar o caráter da “moralidade”; e o indivíduo anti-social (consumidor) transforma-se em doador, o qual passa a se sentir “responsável” pelos outros, pelo mundo, pela ecologia. O próprio impulso social que se projeta como áreas do direito e da lei, regenera a sede de poder dos poderosos com “justiça misericordiosa”. (Brül).
Portanto, o desenvolvimento ético só é saudável se tem o propósito de servir e contribuir moralmente com o mundo. E o mundo precisa do desenvolvimento ético das pessoas. Ou seja, o cultivo do individualismo ético leva o ser humano a se tornar um ser moralmente produtivo no mundo. E, ao desenvolver moralidade, justiça caridosa e responsabilidade, ele pode se contrapor às três forças subumanas: egoísmo, usurpação e poder, respectivamente. Essa força que move tudo chama-se força do amor.
(*) Tese exposta nos livros “Repensar a Ciência” e “Metodologia em Ciência Dedutiva”; e no artigo “Existe Nervo Motor?”, no Jornal Forum Três, do mesmo autor.
Dr. Antonio Marques