Penso, logo existo?

Napoleão: Monsieur Laplace, por que o Criador não foi mencionado em seu livro Mecânica Celeste?

Laplace: Sua Excelência, eu não preciso dessa hipótese!

Esse diálogo entre Napoleão Bonaparte e o Ministro do Interior dele, o famoso matemático e físico Pierre Laplace, reflete o pensar moderno: “O eu é causa-de-si, é a absoluta realidade; o eu é tudo, tudo é eu, ele é ato gerador de tudo” (Schelling). E o (…) “mundo é minha representação. (…) Tudo o que é objetivo é fenômeno, simples fenômeno cerebral, e a vida não se contenta com assemelhar-se a um sonho, ela é um sonho” (Schopenhauer). Assim os filósofos quiseram colocar o “trono” do homem acima do “trono” de Deus. Eu falei em Deus? “Ai, meus irmãos, esse deus, que eu criei, era obra humana e delírio humano. Os deuses morreram desde há muito; e, na verdade, morreram de uma boa morte alegre, como cabe a deuses” (Nietzsche).

Prepotentes e abastados no mundo, não precisamos de “Deus” em nossas vidas, não precisamos “questionar” as coisas como os filósofos faziam, não precisamos de ninguém! A ciência indutiva e empírica nos satisfaz e nos fascina a cada dia. As novas descobertas tecnicistas alimentam o nosso “deus mecânico”, o qual passa a ser mais e mais venerado, através da mídia. Nesse sentido, precisamos aproveitar tudo, experimentar tudo, empanturrar-nos de todas as coisas, no superlativo do prazer. O que importa é ser mais “egoísta” e tirar o maior naco do bolo. Por isso é que 50% dos homens se julgam deuses e os outros 50% têm certeza disso.

Chegamos a um ponto da nossa civilização industrial tecnicista, que aceitamos facilmente, sem questionar, o estudo dos embriões, o Projeto Genoma, pela Biotecnologia. Qual é o objetivo dele? Justamente eliminar um embrião anormal que possa desenvolver um adulto doente. Essa idéia não produz em nós o horror que produziria ao eliminar uma criança ou um adulto, como os espartanos faziam. Pode-se, assim, erradicar inúmeras doenças genéticas, como o mongolismo, simplesmente exterminando, abortando os embriões antes de nascerem. A própria clonagem de embriões se tornaria legítima nesse sentido, pois poder-se-ia conseguir a tão decantada “raça pura”, sem nos sentirmos culpados. Isso sem falar na extração de tecidos ou órgãos “virgens” em embriões recém-formados, para “auto-transplantes”.

O mesmo pode-se dizer dos transplantes de órgãos vivos, os quais são mais fáceis de “pegar”. Para se conseguir isso, foi preciso mudar o conceito de morte. Até a década de 60, a morte significava a parada cárdio-respiratória. Esse conceito vem da Filosofia Escolástica da Idade Média, em que se considerava o ser humano um ser espiritual e vivente do pulsar no ritmo do coração, sede da alma. A partir de 1968, nos Estados Unidos, mudou-se o conceito, para “morte cerebral”, através da qual o indivíduo apresenta danos irreparáveis no cérebro, mas com preservação das atividades cardíacas e respiratórias, graças às quais os órgãos permanecem vivos.

E o que se pretende atualmente é desmontar todo o edifício do sub-consciente, pois afinal esse termo não se coaduna com o que se tem de imagem tecnicista do ser humano. Está sendo criado o machine-man (o homem cibernético, o über-menchen nietzschiniano, o super-homem) nos laboratórios de genética, o qual passará a viver no Universo digitalizado, internético, supragalático. Nesse sentido, a visão do ser humano se restringe ao imput – output (liga – desliga), dentro de circuitos integrados numa “rede de linhas excitatórias e inibitórias de projeção (feedforward) e de retroação (feedback)” (Popper).

Esses três exemplos ilustram como rompemos o século passado, o século XX. Parece incrível, mas apesar de todo o progresso “hi-tech”, que nos proporciona a decantada liberdade, sentimo-nos presos às posturas radicais da própria ciência tecnicista, a qual vê o homem apenas como máquina. “Conquistamos a liberdade, mas não sabemos o que fazer com ela” (Sartre). Conseqüência: vomitamos o nosso egoísmo para o mundo, atropelamos todos, para extrairmos o máximo de prazer egoísta. Por isso a necessidade de “normas e códigos morais”, que se substanciam em “leis”, pois afinal “o homem é um animal que, a partir do momento em que vive entre outros indivíduos de sua espécie, necessita de um amo” (Kant).

Assim o ego prepotente bateu de frente com os códigos morais, que existem no sentido de frear a ganância e a prepotência humanas. E o mais grotesco que se vê hoje é que a autoridade, o “amo”, não se contenta em ordenar o viver social e o atuar econômico: o “amo” quer normatizar o interior humano (o pensar, a essência, a ética). Para isso criam-se “códigos de ética” em todas as atuações humanas. Mas como a ética se substancia no individuum (o interior, o espiritual), não é possível enquadrá-la dentro de normas. “Assim como existem muitos “seres”, também existem muitas formas de “bens” particulares. A cada “ser” corresponde uma espécie de “bem”, próprio e determinado, que se identifica com sua possível perfeição” (Tomás de Aquino). Nesse sentido, a ética leva o homem a almejar atingir a plena realização de sua essência; ou seja, é um caminho interior, individual. Já a moral tem a ver com as realizações: tanto na vida social como na vida econômica, ou seja, corresponde a um caminho exterior. Por isso diz-se que “os homens são bem ou mal aventurados, dependendo das suas atuações no mundo” (Aristóteles). Não adianta ter boas intenções (ética), pois dessa qualidade o inferno está cheio. Além de “ser” (ética), é preciso “fazer” (moral). Ou seja, é preciso o desenvolvimento do individualismo ético para que nos tornemos moralmente produtivos. Nesse sentido, é mais um absurdo e prepotência traçarem códigos para a ética. Uma intenção (ética) só pode ser julgada, após ter sido executada (aí se transforma em moral). Por isso é que se tem medo de inovar, medo de criar, medo de pensar coisas novas, pois tudo deve estar dentro da “cartilha”, do livro, “do código de como se deve pensar”, das imposições do “amo”. (Resumindo: Os códigos têm que ser morais).

Chegamos ao fundo do poço da evolução materialista. Ao mesmo tempo que se soergueu o ego acima da divindade, ele ficou preso às quatro paredes do sensório, até ser enquadrado em “códigos”. Tornamo-nos ateus, mas embevecidos da criação. Essa postura esquizofrênica do homem moderno tem patrocinado os piores males: depressões, neuroses, síndromes do pânico, doenças iatrogênicas, doenças malignas, seqüestros, guerras, etc. Perdemos a humanidade que tínhamos dentro de nós, porque nos falta a visão do conjunto, do todo. Ou seja, fracionamos o mundo em áreas de influência mercantilista, dividimos as profissões em especialidades e “anatomizamos” o ser humano em partes. Realmente é mais fácil exercer o poder quando se pulverizam os grupos humanos e se retiram destes a possibilidade de conhecer a si próprios.

Do homo sapiens, nos aprofundamos na matéria e fizemos surgir o homo artificialis. Será que conseguiremos descobrir o homo espiritus nesse emaranhado? Aqueles que ficam fascinados pela materialidade, coitados, se fixam no vazio, pois, como se sabe, impera o vazio dentro do átomo. Ao se comprimir a matéria, não sobra quase nada. O elétron como o núcleo, não possuem massa, apenas “movimento”, na linguagem dual da onda-partícula da “mecânica ondulatória”. Assim a tese de doutorado de Louis de Broglie, em 1924, deu sentido novo à valsa quântica. Do que era fixo e determinado na hipótese de Laplace, passou-se a conviver hoje com os “Princípios de Incerteza” e os “Testes de Probabilidade”. Reerguem-se as velhas doutrinas: pitagórico da Música das Esferas, keppleriano do Universo através dos cinco corpos platônicos, aristotélico do Universo finito e do movimento eterno. Estas ressurgem mais do que modernas. Até Copérnico buscou os conhecimentos pitagóricos e platônicos, para refutar o “equante” e ressuscitar a doutrina do “fogo central” (modelo heliocêntrico de Aristarco dezoito séculos antes de Copérnico). O mesmo pode-se dizer do grande Kepler, que “descrevia” o modelo de Copérnico, ou seja, previa as distâncias entre os planetas com uma acurácia de aproximadamente cinco por cento, a partir de uma metodologia científica genuinamente dedutiva. Deduziu ele que somente através dos cinco “corpos platônicos”, por serem os únicos sólidos regulares que podem ser construídos em três dimensões, poder-se-ia demonstrar o modelo geométrico do Universo. E assim o fez. Inclusive a Astrofísica moderna fala que a nossa Terra é composta das mesmas substâncias que compõem o Universo e que este é o único planeta habitável dentro desse “mundão de Deus”. Isso é devido à nossa privilegiada situação de estar a uma distância certa do astro-rei, o sol. Nenhum outro planeta preenche esse pré-requisito vital. Essa afirmação vem ao encontro da Física aristotélica: A Terra é o único planeta habitável e o centro do Universo. A periferia cósmica, com suas galáxias monumentais, nebulosas fantásticas, buracos negros abissais, é a morada dos deuses, das hierarquias espirituais.

O próprio Descartes, apesar de considerar a famosa sentença “cogito ergo sum” como o primeiro princípio da filosofia, faz uma retratação magistral em seu discurso: “E notando eu que, em penso, logo existo, não há nada que me garanta que eu esteja dizendo a verdade, do mesmo passo que vejo com clareza que, para pensar, é preciso existir”.

(René Descartes, Discurso sobre o Método, São Paulo : Hemus, 1978, p. 68).

Não resta dúvida de que, como se está vendo, Descartes é dúbio nas suas afirmações. Ao mesmo tempo que se mostra prepotente (penso, logo existo), revela o seu lado religioso-platônico (para poder pensar é preciso que eu tenha sido criado). Só que a primeira afirmação indutiva fixou-se nas mentes das pessoas, como uma prepotência avassaladora e trouxe reflexos na nossa vida moderna.

Aí se vêem as duas faces da mesma moeda: o materialismo e a religiosidade. Parece uma incongruência, darem-se as mãos. De onde vem essa origem comum? Para o homem do passado a busca apolínica da essentia era imprescindível: “Conheça-te a ti mesmo”. Esse caminho não existe mais, perdeu-se na poeira do tempo. Caso enveredássemos nesse trilhar, cairíamos numa postura puramente mística ou religiosa, na qual se descortina o lado interior do ser humano. E, por incrível que pareça, essa visão interiorizada, religiosa é que deu condições para desenvolver-se o “penso, logo existo”, o lado exteriorizado, materialista, da busca do homem para encontrar-se a si mesmo.

Parece que estamos num beco sem saída. Se caminhamos para o exterior, defrontamos com o tecnicismo científico dogmático. Caso retrocedêssemos para o interior, refugiar-nos-íamos no acalanto da religiosidade irrealista. Onde está o caminho certo? Em Goethe, dentro de sua monumental obra literária e científica, pode-se descortinar uma porta para entender o caminho do homem moderno. Eis o que diz ele: “Confesso que a grande meta que parece tão importante, expressa na máxima “Conheça-te a ti mesmo”, tem-me suscitado sempre suspeitas, como se fosse uma astúcia de sacerdotes secretamente confabulados que quiseram confundir o homem com exigências inalcançáveis e desviá-lo da atividade do mundo externo para uma falsa contemplação interior. O homem conhece-se a si mesmo na medida em que conhece o mundo” (Goethe). Assim o homem é projetado para o fenômeno exterior, para o mundo sensorial, para a experiência. Ou seja, a essentia é que se projeta no fenômeno, na natureza, no mundo físico. “O homem conhece-se a si mesmo na medida em que atua no mundo”. Isso denomina-se: “Moralidade”. Para isso é preciso entender o ser humano como “verbo encarnado”. O espiritual é que permeia a materialidade. Nesse sentido a sentença que Descartes corrigiu: “para pensar, é preciso existir” está correta, mas incompleta. O certo é afirmar que “o pensar permeia o existir”.

Dr. Antonio Marques

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