Perguntas de leitores

Como foi o processo pelo qual passou a Medicina Antroposófica (M.A) até o seu reconhecimento como “prática médica” no Brasil?

___A M.A teve início na Suiça e depois na Alemanha, em 1920, através dos trabalhos da Dra Ita Wegman e do Dr. Rudolf Steiner. Este, fundador da Antroposofia: antropos = ser humano; sofia = sabedoria. Ela, médica holandesa, que trabalhou na Suíça, desenvolvendo o “corpo científico” da M.A, no seu consultório, hoje ampliado e transformado em Arlesheim Klinik, o primeiro hospital antroposófico. Assim a M.A é reconhecida pelo MCE (Mercado Comum Europeu), atuando nos sistemas de Previdência Social e de Seguro-Saúde (Versicherung). Só na Alemanha existem mais de 10 grandes hospitais antroposóficos reconhecidos pelo governo. Isso significa cerca de mais de 4.000 leitos. Isso sem citar outros países, como a Suiça, Holanda, Itália, França, Espanha, África do Sul, Argentina, etc. Do leste europeu, Rússia, Croácia, etc. profissionais da M.A começam a participar dos Congressos médicos anuais no Goetheanum (Suiça), sede mundial da seção médica antroposófica.

___Aqui no nosso país ela é também reconhecida, desde 1993, como “prática médica”, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM, parecer no 21/93, aprovado em sessão plenária de 10.12.93). Por “prática médica” compreende-se uma modalidade médica que não difere das posturas tradicionais acadêmicas. Essa é a forma encontrada pelo CFM para atender a nossa atuação “médica”, uma vez que a “especialidade” representa uma conduta tipicamente acadêmica (alopatia) e preenche aos pré-requisitos modernos “indutivos” de caracterizar o grau de aprofundamento numa determinada modalidade médica. Nesse sentido a M.A não é uma especialidade nem uma forma alternativa, mas simplesmente uma “ampliação da arte de curar” ou como é conhecido na Europa: komplementärmedizin (medicina complementar ou integrativa). Isso significa que qualquer profissional médico, de qualquer especialidade, pode ampliar seus conhecimentos e recursos terapêuticos com a prática médica antroposófica. Como afirma o relator do processo de reconhecimento pelo CFM: “Pelo que pude entender, a M.A usa diversos elementos na terapêutica. Usa técnicas de psicanálise, de terapia ocupacional (escultura, pintura), de relaxamento (massagens, banhos, bandagens); usa medicamentos homeopáticos e, inclusive, os medicamentos oficinais. A minha interpretação de conceituação de “ampliação da arte de curar” pretendida pela M.A está no fato de que esta prática procura resgatar um conhecimento, um entendimento do paciente ou do indivíduo em seu contexto bio-psico-social. Algo que nós médicos temos perdido no decorrer dos anos e que, de forma equivocada estamos nos especializando em tratar doenças, deixando o indivíduo de lado” (CFM, parecer no 21/93).

___Esses dois pontos de vistas (antroposóficos e alopáticos) remontam a um passado muito distante. Desde a antiga Índia, com as escolas médicas Yurvédica e Rigvédica, passando pelo antigo Egito, com a medicina-sacerdotal e a medicina-profana, até chegar na antiga Grécia, com as escolas de Cós e de Cnido. Essas duas condutas sempre comungavam na mesma sociedade, procurando atender às mais variadas situações clínicas. No fundo, essas duas escolas representam as duas modalidades científicas presentes nos dias atuais: a ciência dedutiva e a ciência indutiva. Como se sabe, foi Aristóteles, o pai da Lógica e da Ciência, quem traçou o pensamento científico atual. Parte-se da visão “dedutiva”, quando se tem “o Todo” e através de vários “argumentos mediatos” (= mediante vários dados), procura-se chegar a um conceito ou tese ou ideia do fenômeno ou diagnóstico. Pode-se, no entanto, pegar um detalhe dessa visão e procurar aprofundar num caminho “indutivo” (conhecer “uma parte” do problema). Só que, com a evolução, a humanidade caminhou para o puntiforme, para os detalhes, para as partes, no sentido de domínio da materialidade, através das tecnologias. Não deixa de ser um caminho necessário e importante para o ser humano se sentir senhor de si. Mas urge hoje em dia o resgate da visão global do ser humano e por isso esses dois caminhos que sempre comungaram harmoniosamente bem, precisam ser preservados e compreendidos.

___Por isso é que na Europa existem vários hospitais antroposóficos, onde se pratica a M.A ao lado dos melhores recursos tecnológicos acadêmicos. Aqui em Minas Gerais já existe um trabalho pioneiro, desde 1994, por parte da Prefeitura de Belo Horizonte, através do SUS, onde a M.A faz parte do atendimento ambulatorial na periferia da cidade. Isso sem falar das atuações da: Clínica Tobias (SP), Clínica Artemísia (SP), Clínica Médica Vivenda Sant’Anna (JF), Terapeuticum Raphael (JF), Hospital Antroposófico de Matias Barbosa (HAMB) que alberga o Ambulatório das Práticas Integrativas e Complementares (APICS) de Matias Barbosa (MG),Clínica Vialis (Florianópolis-SC), trabalho médico na favela Monte Azul (SP), trabalho no SUS em São João Del Rei (MG) e demais clínicas e consultórios médicos espalhados pelo país.

___Temos a nossa Associação Brasileira de Medicina Antroposófica (ABMA), com sede em Belo Horizonte (MG), onde são coordenados os trabalhos científicos, os congressos médicos bi-anuais, as edições da revista “Arte Médica Ampliada”, a formação de profissionais, os intercâmbios com a seção médica do Goetheanum (Suiça), sede do movimento antroposófico internacional e com todo o mundo.

___A M.A no Brasil tem muito que agradecer à Dr.a Gudrun Burkhard, a introdutora dessa modalidade no país. Após ela fazer um curso na Suiça, montou o seu primeiro consultório na sua casa, em São Paulo. Daí foi um pulo para nascer a Clínica Tobias, onde inicialmente centralizou a formação dos novos interessados pela M.A.

O que essa novidade altera no comportamento do médico em relação ao paciente?

___Como se sabe, apesar de todo avanço tecnicista, para descobrir novos remédios e de exames mais sofisticados, o médico fica cada vez mais preso às posturas traçadas pelos códigos e livros dogmáticos. Até que saia um outro livro mais moderno, condenando o anterior. E, assim, se pratica a medicina atual, “baseada em evidências”, totalmente “empírica”. Atualmente nas escolas médicas se fala em desenvolver a “compaixão”, no sentido de dar um calor humano ao relacionamento médico-paciente. Mas ainda é uma postura tímida, dicotomizada, platônica, entre o pensamento frio e a atuação calorosa.

___O que a M.A quer resgatar é justamente a unidade médica, “a arte médica”, através da compreensão das estruturas complexas vivas, em conjunto com uma atuação humana caridosa. Isso deve ser entendido num ponto de vista “monista” (pensar e atuar numa unidade). Para isso é preciso, em primeiro lugar, pegar a linha histórica da humanidade, para entender a evolução da Ciência, no sentido de ser congruente entre o pensar (a teoria) e o atuar (a prática). Em segundo lugar, o alicerce onde deve se assentar esse ideal se situa na ciência dedutiva goetheanístico-steineriana. É aqui que se encontra o ponto de sustentação da M.A, como argumentação científica perante o mundo científico.

___E em terceiro lugar, o que o paciente ganha com tudo isso? Simplesmente esses parâmetros científicos acima assinalados nos colocam perante um grande leque de “responsabilidade moral” perante o nosso paciente, pois podemos assim formular “hipóteses causais” e aventar sugestões medicamentosas que fogem ao simples trivial da cartilha dogmática sintomática. Novos exames, possibilidades diagnósticas e condutas terapêuticas abrem-se à “arte de curar”.

O que essa mudança contribui para a formação do médico?

___O tecnicismo serve muito bem como instrumento para aprofundar nos detalhes, num processo de “microscopar” as coisas. A mudança que a M.A propõe é no sentido do “macroscopar”, de abrir novas possibilidades pensamentais e de atuações no mundo. Não se fixa apenas no rótulo da doença; mas, ao se tentar entender a gênese da patologia, pode-se abordá-la com remédios e condutas terapêuticas que vem em auxílio à fisiologia corporal. Não se nega a conduta acadêmica, a qual muitas vezes é utilizada num momento de crise, inclusive com indicações cirúrgicas. Mas, quanto mais se pratica a M.A vê-se o quanto ela é fisiológica e de atuação causal.

___No fundo, os remédios antroposóficos são fisiológicos, pois vão ao encontro da função de determinado órgão ou de sistemas orgânicos. Ao se entender as funções mais profundas do ser, pode-se “entender” o processo patológico e assim explicar ao seu paciente, para que ele acompanhe todo o desenrolar de seu mal e contribua conscientemente na sua recuperação ou superação (desde que isso seja possível).

Como foi o processo de reconhecimento do CFM?

___Ao realizarmos o nosso 1º Congresso Brasileiro de M.A, aqui em JF, a mesa diretora achou por bem convidar a classe médica oficial e assim estendeu o convite ao CFM, o qual gentilmente esteve presente através de seu representante mineiro, o Dr. Evilázio Teubner. Em contrapartida, este fez o convite à mesa coordenadora do Congresso para um diálogo em Brasília, o que foi prontamente realizado, através deste autor, Presidente daquele 1º Congresso. Foi agendada uma reunião com o Presidente do CFM, Dr. Mesquita, o representante mineiro, Dr. Teubner e o relator do processo, Dr. Nilo. Após a exposição do que representa a M.A no mundo e o que ela pretende, o Presidente do CFM se mostrou muito compreensivo com os anseios dos que procuram “humanizar” a medicina. Mas afirmou de antemão que o reconhecimento da MA só poderia ser realizado como “prática médica” e nunca como “especialidade”, pois era intenção desse Egrégio Colegium colocar a Homeopatia, Acupuntura e a Medicina Antroposófica, dentro desse grande título: PRÁTICAS MÉDICAS, uma vez que não são especialidades, como se falou acima. O Dr. Nilo visitou várias instituições médicas antroposóficas em São Paulo, no sentido de alicerçar as argumentações necessárias, para dar sustentação à premissa anteriormente formulada pelo Presidente do CFM. Foi então, em 10.12.93, no Processo no 21/93, aprovado em sessão plenária, o reconhecimento da M.A como “prática médica”, pelo CFM.

___Esta foi uma vitória para a M.A, pois esse reconhecimento como “prática médica” nos coloca como autênticos praticantes da “arte de curar” (não somos especialistas) e abre uma chance aos colegas especialistas acadêmicos uma ótima possibilidade de ampliação de seus conhecimentos através da nossa prática. Ou seja, o médico pode ser “especialista” e somar com a nossa “prática médica”.

Quais são as perspectivas para o futuro?

___No nosso país ocorreu um boom da M.A, nos anos 70/80, através de vários grupos de estudantes de medicina. Havia uma pergunta no ar: o que é o ser humano, o que se pode complementar fora dos bancos escolares? Atualmente, esse primeiro grupo está mais preocupado em realizar trabalhos sistematizados dentro de suas respectivas áreas de influências: clínicas, consultórios ou no SUS. Por exigir um trabalho hercúleo dentro do seu pequeno núcleo profissional, ocorreu um processo natural de “introspecção”. A tarefa política de informar, coordenar e levar o impulso para fora destes pequenos círculos, ficou por conta das instituições organizadas para esse fim: ABMA e suas filiadas.

___A M.A é no fundo uma proposta para o futuro, quando se precisará abordar o ser humano dentro de suas verdadeiras causas. O que pratica hoje é um modelo incipiente e idealístico; e não se pretende que tudo vire “antroposófico”, como se fôssemos os únicos sabedores de tudo. Queremos compartilhar com o mundo, em igualdade de direitos, pois estamos sempre aprendendo com as descobertas da ciência indutiva. Afinal, também utilizamos os recursos acadêmicos e somos eternamente gratos por existirem. O que queremos é apenas servir de opção como complementação à pluralidade de se ver o mundo e de ser mais uma possibilidade de contribuirmos como “letrados” no mundo, como diz Fichte, filósofo alemão.

Qual é a repercussão da M.A nos segmentos acadêmicos?

___A M.A é ainda bem desconhecida dos segmentos acadêmicos, por dois motivos: a medicina acadêmica não interessa conhecer nada além dos seus parâmetros. Isso é justificado em parte, por causa dos anos de dedicação daqueles profissionais dentro das suas respectivas áreas de atuações e não sobra tempo para nada. Como já há um domínio de certas patologias pela medicina acadêmica, conseguem-se alívios para muitos males. Só que, com a supremacia dos remédios alopáticos, com seus efeitos colaterais obrigatoriamente previsíveis e esperados (o melhor remédio é aquele que tem muitas vezes mais efeitos indesejáveis), está ocorrendo algo de novo, que não nasce de dentro do corpo médico. Nasce do espírito crítico que o paciente está tendo, o qual procura algo mais condizente à sua natureza, menos agressivo e que responda aos seus anseios. Por isso, em parte, a M.A responde a esses anseios, pois procura entender a doença e complementa a visão acadêmica.

___Em segundo lugar, dentro da M.A, não há muito interesse em se expor perante o mundo científico nitidamente indutivo, com um pensamento científico dedutivo. O indutivo não entende o dedutivo, pois é apenas uma especialidade daquele. O dedutivo por abarcar o indutivo formal dentro de si entende perfeitamente bem o ponto de vista atual da ciência e procura dar um cunho maior e mais significativo dentro da sua abordagem médica antroposófica.

Dr. Antonio Marques

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