A trágica iniciação de Édipo
Quem nunca ouviu falar de Édipo, Laio e Jocasta? Pelo menos, por causa da novela da Globo, todos se lembram da “história do filho que mata o pai e casa com a própria mãe”. Por causa disso, desgraça a si, sua família e toda a comunidade onde morava. O que se encontra por detrás desse “drama” escrito por Sófocles, 400 a.C.?
Toda a história se passa em Tebas, cidade grega, onde viviam o rei Laio e a rainha Jocasta. Quando tiveram o primeiro filho, o oráculo (sacerdote que fazia previsões) predisse que a criança mataria o próprio pai e desposaria a mãe. Assustado com a previsão, o rei Laio mandou que levassem a criança e a matassem. Porém o escravo a leva para outro reino, onde é criado como príncipe. Na juventude, durante uma discussão com um companheiro, este acusa Édipo de não ser filho legítimo do rei daquele reino. Édipo procura o oráculo para pedir explicações e este repete a mesma profecia, de que “ele mataria seu pai e se casaria com sua mãe”. Desesperado, com medo de que a profecia se concretizasse, fuge para outras terras. No caminho, num desfiladeiro estreito, encontra uma comitiva que vinha em sentido contrário. Por uma questão de preferência de passagem, eles se desentendem e lutam até à morte. Édipo acaba matando a todos. O fato é que essa comitiva era a do rei Laio e sem saber, Édipo cumpre metade da profecia.
Depois de muito caminhar, Édipo chega às portas da cidade de Tebas. Só que havia uma esfinge (figura metade homem, metade animal), que barrava a entrada de qualquer pessoa à cidade. Só poderia passar quem adivinhasse o enigma proposto por ela. O povo de Tebas estava dando o trono e a mão da rainha Jocasta, que agora estava viúva, a quem decifrasse o enigma da esfinge, livrando a cidade de sua maldição. Como Édipo consegue resolver o enigma, ganha o trono e se casa com a rainha. Cumpriu-se, assim, a profecia.
Édipo com Jocasta tiveram 4 filhos: dois homens – Etéocles e Polinices e duas mulheres: Antígona e Ismênia. Muitos anos depois, Édipo e toda a cidade descobrem o que havia acontecido: Jocasta, desesperada, enforca-se e Édipo, como auto-punição, fura seus olhos, ficando cego. Banido, Édipo vaga de cidade em cidade, sempre acompanhado de sua filha, Antígona, até morrer na cidade de Colona.
Com a saída de Tebas, seus dois filhos herdam o trono. Para não haver desentendimento, eles optam pelo sistema de rodízio anual. O primeiro a reinar foi Etéocles, mas quando foi a vez de Polinices, Etéocles não quis entregar o trono. Polinices (e sete generais) se vê obrigado a se reunir com o inimigo, com o intuito de atacar a cidade e reaver o trono. Nessa guerra, os dois se enfrentam e, feridos, um pelo outro, morrem em batalha. Assume o trono, Creonte, irmão de Jocasta, ambicioso e irredutível nas decisões ditatoriais, que acaba empreendendo nova guerra contra o inimigo que se associara a Polinices. Mas esta foi desastrosa, pois, além de perdê-la, seu filho mais velho morre em batalha. O filho caçula também morre e sua esposa se suicida, pela perda dos filhos. Por fim, é a perdição para a família dos Labdácidas, como é conhecida a família de Édipo.
O que existe por detrás desta dramática trilogia de Sófocles: Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona?
Em tempos imemoriais, sabia-se que o homem possuía corpo, helikia, psyké e Noûs (termos gregos) ou: corpo físico, etérico, alma e espírito. A iniciação espiritual antiga, até o Egito antigo, período que corresponde à 3a época cultural pós-atlântida (a 1a foi a Índia e a 2a foi a Pérsia), visava “casar” o espírito (o Eu, a individualidade) com os elementos superiores do homem (alma e etérico), os quais representavam o “lado feminino”. A matéria (o físico, o lado masculino, o pai) era apenas um “amontoado mal cheiroso de músculos e ossos”, que se devia desprezar, por representar “maya”, a ilusão terrena (palavra indu). Intentava-se “casar com a mãe”, o elemento feminino e desprezar (ou matar) o “pai”, a matéria. Era uma iniciação espiritual drástica, em que muitos morriam, por não conseguirem retornar à matéria após os 3 dias de experiência no mundo dos espíritos. Lázaro foi o último a realizar esse processo, após a “pseudo-morte” de três dias: “As irmãs mandaram dizer a Jesus: “Senhor, aquele a quem amas está doente”. A estas palavras disse Jesus: “Esta doença não causará a morte mas se destina à glória de Deus”… Lázaro, nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo” (João, 11, 3-11).
Cristo também realizou esse processo, mas um pouco diferente, unindo-se ao elemento feminino da sua mãe, para realizar um milagre: a transformação da água em vinho. “No terceiro dia houve umas bodas em Caná da Galiléia e estava presente a mãe de Jesus. Também fora convidado para a festa de casamento Jesus com seus discípulos. Tendo acabado o vinho, disse a mãe para Jesus: “Eles não têm vinho”. Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, flua de mim a ti. Ainda não chegou a minha hora”. Disse a mãe aos servos: “Fazei o que ele vos disser”. Havia ali seis talhas de pedra… “Enchei de água as talhas”… E logo o mestre-sala provou da água convertida em vinho” (João, 2, 1-9). [A sentença assinalada está corrigida, pois na tradução para o latim, houve um erro crasso: “mulher, o que há entre mim e ti?”] Assim se pode apreender o significado do Eu divino se unir ao elemento “feminino” da sua mãe, para realizar esse “milagre” na matéria.
Iniciação antiga
“casamento” entre o Espírito + Alma/Etérico (a mãe)
E mata o Físico (o pai)
Só que, durante o período grego, esse tipo de desenvolvimento espiritual estava em decadência e deveria ser suprimida sua forma de realização. Caso alguém se enveredasse nesse caminho, cairia em desgraça, a qual se estenderia a todos os seus e à sua comunidade. Cada um de nós carrega um Édipo dentro de si. Todos intentamos, mesmo atualmente, “casar” com o nosso lado feminino: prazer, luxúria, egoísmo, etc., posturas que podem chegar às raias dos vícios pecaminosos, da religiosidade fanática, das drogas entorpecentes, etc. Na época atual, não podemos “casar com a mãe”, com os elementos superiores (com a alma e o etérico) e desprezar a matéria (o pai). O que pode acontecer? Voltando à lenda, desse “casamento anômalo”, geram-se 4 filhos: dois com características etéricas (as filhas) e dois com características anímicas (os filhos). As filhas dão todo apoio ao pai (Édipo) e lhes são permanentemente fiéis (o etérico, a vitalidade, acompanha sempre o espírito). Os filhos, representantes da alma, a qual é polarizada, entre animus e anima, entre positivo e negativo, entre o bem e o mal, empreendem uma luta cruenta, que acaba em destruição para os dois lados da alma. Etéocles personifica o lado negro da alma e Polinices, o lado bom, mas sem forças para enfrentar sozinho o lado mau. Ao se associar ao inimigo, põe a perder toda a comunidade (o corpo todo), pois acaba lutando com o seu irmão e ambos morrem em batalha. Assim a alma se auto-destrói.
Como Platão fala, existem duas forças na alma, como dois cavalos, um branco e outro preto, como polaridades, os quais precisam da maestria do cocheiro para domar a parelha. Como neste caso, o domínio do Eu (Édipo) não existe mais, estes cavalos começam a se estranhar e partem para a briga. Caso não haja domínio do espírito para a alma, esta começa a manifestar a sua própria característica, que tem a ver com o “desejo”. Um desejo desenfreado, todos sabem no que pode dar. E o que move a alma é justamente o “desejo”, o qual é uma forma de se estar presente no mundo, no palco das nossas vidas. Mas precisa-se de um domínio, que deve vir de cima para baixo. Por isso Platão e Aristóteles dizem: “o espírito é exterior e enraizado na alma” (o espírito vem de fora, de cima e se imiscui na alma). Com a destruição da alma, com a morte dos dois filhos, assume o trono Creonte, uma força estranha, maligna, isenta de sentimentos humanos, a qual coloca tudo a perder. Pode representar a força maléfica, demoníaca, mefistofélica, que vem de fora, assume o controle do ser moribundo e acaba por destruir tudo.
Portanto essa é uma infeliz iniciação espiritual, a qual não se deve almejar. Representa um caminho antigo, que “deve ser cortado” desta vida. Inclusive o Cristo, ao “cortar a figueira”, quis apontar que, nesse reduto, onde se praticava essa antiga forma de meditação: ficar parado, na posição búdica, imóvel debaixo da árvore, insensível ao mundo, somente voltado para o fenômeno espiritual, não deve mais existir.
Pode-se dizer que, no passado, vivia-se em um lado da moeda: o lado espiritual. Hoje se vive o outro lado da moeda: o materialismo visceral. Não deixa de ter razão quem afirme que, por questão evolutiva, o homem moderno precisa “casar com seu pai”, com a realidade do mundo. Em Goethe, dentro de sua monumental obra literária e científica, pode-se descortinar uma porta para entender o que significa o “viver realístico”. Eis o que diz ele: “Confesso que, a grande meta, que parece tão importante, expressa na máxima “Conheça-te a ti mesmo”, me há suscitado sempre suspeitas, como se fosse uma astúcia de sacerdotes secretamente confabulados que quiseram confundir o homem com exigências inalcançáveis e desviá-lo da atividade do mundo externo para uma falsa contemplação interior. O homem se conhece a si mesmo na medida em que conhece o mundo”. Assim Goethe projeta o homem para o fenômeno exterior, para o mundo sensorial, para a experiência. Ou seja, a essentia é que se projeta no fenômeno, na natureza, no mundo físico.
Iniciação moderna
“casamento” entre Espírito + Alma + Etérico + Físico
No entanto, porque a Ciência atual não dá salvaguarda aos “anseios íntimos da alma”, o homem se vê obrigado a recorrer ao outro lado da moeda (ao passado espiritual), mas este só encontra o “bezerro de ouro”, como o novo deus mecânico. Por isso recorre aos subterfúgios das drogas químicas (entorpecentes, ansiolíticos, álcool, cocaína, etc.), das drogas sociais (apatia, imoralidade, criminalidade, corrupção, terrorismo, etc.), das drogas da alma (egoísmo, prepotência, sexualidade doentia, etc.).
Portanto a iniciação atual tem outro significado. Deve-se “casar com o pai”, com a realidade, com a materialidade, mas tendo o espírito, o Eu, como centro, como um bastão vertical, em torno do qual gravita a alma, como uma “cobra enroscada”. Este símbolo mosaico ou crístico é também o “símbolo da medicina”. Nele devemos nos inspirar e procurar aprumar o mais verticalmente possível o “nosso bastão” (nosso Eu), para galvanizar a alma em torno de si.
Antonio Marques