Muitos ouviram falar das correntes platônica e aristotélica. Seriam elas antagônicas, que se digladiariam entre si? Engana-se quem assim pensa. Cada qual representa importante processo de evolução humana, em fases distintas. Cada qual aborda o ser humano a partir de um ponto de vista: Platão disseca a “alma” (é o maior dos Psicólogos) e Aristóteles adentra o “espírito” (é o maior dos Cientistas Dedutivos Goetheanistas), cujas simbologias estão retratadas acima: Símbolo Platônico — “cobra mordendo o próprio rabo” (urobolo indu), representa as forças “anti-luciféricas” e Símbolo Aristotélico — “bastão segurando a cobra” representa as forças “pró-crísticas”. Como se verá, no texto abaixo, historicamente há uma metamorfose entre os dois impulsos, uma evolução por acréscimo de “força superadora do pecado”. Ou seja um não pode viver sem o outro e por serem polares, fazem parte de um todo. Um vem do passado mais remoto e o outro é o representante do futuro. Nossa tarefa é tecer o liame que unam os extremos para viver no presente.
O “link” entre os dois símbolos é a cobra, a serpente. Desde os tempos imemoriais, a cobra é o símbolo da alma: ao mesmo tempo que mostra juventude, rejuvenescimento, pela troca da pele, escancara seu lado rastejante, vil, sorrateiro, que pode dar o bote a qualquer momento. Ou seja, tem dupla face: o bem e o mal, típico da alma. Na Hata-yoga existe a serpente kundalini ascendendo como um “bastão” a coluna vertebral. A manipulação dessa força instintiva é que contribuiu para o afundamento da Atlântida (Dilúvio); e na Índia essa prática já estava em decadência. Na Suméria ainda persistia a influência indu, da serpente Sachan, representante da juventude e da saúde. É conhecida a lenda que, na época de Tróia, quando a Grécia se libertou da influência espiritual troiano-asiática, duas serpentes enviadas pela deusa Atenéia (Minerva), saíram do mar e atacaram os sacerdotes que pretendiam ali realizar seus sacrifícios religiosos. O grupo plástico de Laocoonte, no Museu do Vaticano, lutando contra os poderes da serpente, representa a revolta divina contra a espiritualidade atávica.
O que diz o Psicólogo Platão? “há três partes (tría trichê) da alma que receberam três moradas diferentes e cada uma delas têm seus movimentos próprios” (Timeu 89). A alma epitimética (tó epithymétikon) é a parte da alma mortal, não tem lógica e é sedenta por riquezas (desejos). Está relacionada ao baixo ventre, metabolismo e sexualidade. A alma timocrática (tó Thymoeides) igualmente mortal e a-lógica, mas recebe seus impulsos da parte superior, da alma logistikón (tó Logistikón), sede do pensar intelectual (téchnai); por estar próxima do divino, do Nous (espírito) é igualmente imortal.
Portanto a alma (psique ou corpo astral ou peri-espírito) é trimembrada: “Pensar, sentir e atuar”. E Platão arremata: “Quando uma impressão, mesmo breve age sobre ela (a alma), suas diferentes partes se lhes transmitem em círculo. Cada uma age semelhantemente sobre a outra, até que a impressão chegue à parte inteligente da alma e lhe manifesta a qualidade do objeto que a produziu” (Timeu 64). Ou seja, um corte na mão ou uma impressão recebida no corpo, sofre primeiramente uma percepção na alma mortal que transforma a impressão em qualidade a ser arrazoada pela alma imortal. Somente então, a percepção tornada sensação será nomeada “dor”. Por isso se pode dizer que “não existe nervo motor”; apenas nervos sensitivos aferente e eferente. A sensação é captada pelo nervo sensitivo aferente, é levada ao SNC, no sentido de a alma apreender o que se passa na periferia do corpo e depois desce pelo nervo sensitivo eferente para resposta na placa motora, através da substância (sub + stancia), também manifestação da alma. Por isso Platão e Aristóteles são unânimes em dizer: “Quem mexe o corpo é a alma”.
E quem mexe a alma? O “desejo”. E como temos 3 partes da alma, temos 3 tipos de desejos: “intelectual – sentimental – carnal”. Afinal é através da alma que nos relacionamos com o mundo (o Eu, o “bastão”, se manifesta no mundo através da alma). Em primeira instância somos agradecidos por essas qualidades anímicas, por permitirem os nascimentos da “Liberdade e da Individualidade”, numa fase precoce da Humanidade; se se perpetuam essas qualidades, gera-se “Poder em todos níveis da alma”. Por isso se têm as 3 qualidades maléficas anímicas: “poder – mentira – raiva”. Pode-se simbolizar assim: quando a cobra fica solta, ela se empanturra de desejos, no superlativo do prazer e pode morder todo mundo a sua volta. Ao se cansar dessa postura egoística ou sofrer um revés na vida, volta-se contra si: “começa a se morder”. Esse processo era realizado pelos iniciados indus e até bem pouco tempo, nas autoflagelações religiosas. Ainda hoje, diariamente, carregamos essas influências anímicas que podem se traduzir nos quadros clínicos psicopatológicos (pânico – depressão – ansiedade/raiva). Se a cobra “cravar o dente no rabo”, manifesta-se como doença física. Ou seja, na Psiquiatria se diz “somatização” (transferir a psique para o corpo). Vamos recorrer à visão platônica, para esclarecer melhor e inclusive para referendar esse símbolo como platônico: como o prazer nasce da parte instintiva da alma (epitimética), há a necessidade de um autocontrole pela parte reflexiva da mesma – logistikón (Rep. 442a). Essa conduta primitiva é representada pela “cobra mordendo o próprio rabo” (a alma dominar a própria alma). “Morder a si mesmo” significa o esforça da parte mais elevada da alma em controlar a parte instintiva anímica. Isso é Platão.
Nessa mesma linha de pensamento, Freud entende o ser humano como possuidor de um “Ego”, a parte da consciência do mundo exterior e por algo que está mergulhado no psiquismo inconsciente, que ele denomina de “id” (termo gramatical também usado por Nietzsche, que traduz o que é impessoal em nossa natureza instintiva). Assim o id, o “grande armazenador da libido”, das pulsões sexuais, precisa ser dominado pelo Ego, “em posição de autoridade, suas injunções e proibições permanecem poderosas, a exercer a censura moral” (O Ego e o Id). É a mesma imagem da cobra mordendo o próprio rabo (ou o Ego mordendo o id).
A imagem da cobra remonta ao período Indu (urobolo), como manifestação da iniciação praticada nos Centros de Mistérios Indus, visando conter a força luciférica presente na alma. Pode-se dizer que vem como reflexo da Atlântida, período no qual o atlante sucumbiu a essa força anímica poderosa, culminando com o Dilúvio. Isso nos mostra que pelo conhecimento, pelo sofrimento, conduz ao Amor, nossa finalidade como filhos de Deus. Afinal somos a “Hierarquia da Liberdade e do Amor”. E essa lição de casa os platônicos fizeram muito bem. Essa corrente vem de uma época muito antiga; por isso estão cansados de enfrentar os pecados da alma. Estão buscando o Amor, o Deus, como bálsamo para suas almas calejadas e sofridas. Só que esse Deus está sendo buscado lá fora e não dentro de si. Essa é a característica platônica (no símbolo não tem bastão). Por isso Platão sentenciava: “Eu me contento com a visão do Demiurgo (Deus) e me retraio na minha pequenez”. A realização platônica visa o mundo espiritual exterior, depois da morte e não nesta vida (Deus está fora de mim).
Como fazer os platônicos despertarem esse Deus dentro de si ?
A outra imagem, do “cajado segurando a cobra”, remonta há 5.000 a.C., período da influência zaratustriana, na Antiga Pérsia. Isso representa um gigantesco passo na escalada evolutiva humana, pois considera que a mesma Divindade (Ahura-Mazda) habitante do Sol, mora também dentro de mim. Enquanto o indu via Brahmma, o Ser Supremo na periferia zodiacal, Zaratustra falava do Deus no sol. Era preciso um trabalho hercúleo para trazer esse Ser Solar para a Terra, para dentro de mim: com um ancinho rasgava-se a terra para receber o sol e com esforço espiritual deve-se soerguer para acolher o Espírito Solar. Portanto esse “símbolo ahura-mázdico” (do bastão segurando a cobra) ainda era uma promessa para o futuro da Humanidade, de incorporar o Deus Solar para dentro de mim. Também Moisés recebe de Javé (Cristo) esse “símbolo crístico”: “faça uma serpente, pregue num cajado e finque no deserto: quem olhar para essa figura será salvo”. Portanto, no correr da História, o que era um “símbolo ahura-mázdico”, como promessa, transforma-se no “símbolo crístico”, como realidade, do Deus que está dentro de mim, que enfrenta o mal dentro de mim: um ser superior que segura a cobra, o pecado.
Por que essa imagem do “bastão segurando a cobra” é relacionada à Aristóteles? Por ser fenomenologista, traz para a realidade o corpo, a alma e o espírito, numa unidade. Por isso sua visão monista. Como se pode ver isso? Em primeiro lugar, Aristóteles nega a “retórica” (platônica) e inaugura o “raciocínio”, o qual necessita da “experimentação” (Tópicos 184b), cujo objetivo é a “dedução”: “Homem, animal racional”. O que significa isso? Espécie (homem) que se liga ao gênero (animal), com a qualidade mais nobre do ser (racional). Ou seja, animal que caracteriza o que existe de igual em todos os seres “animados” (portadores de uma alma) e racional que o identifica com o que é mais elevado e espiritualizado em si, a sua razão. Portanto, dedutivamente ele quer dizer? “Homem, composto de corpo, alma e razão”.
Em segundo lugar, apesar de ser chamado Filósofo da Lógica, ele faz a pergunta: O que pensa Deus? “Irresistivelmente nos sentimos arrastados para a questão: Qual é o conteúdo da atividade do Nous (de Deus) e que relação impera o conteúdo de seu pensamento e sua perfeição? Se não pensa nada, está em repouso; é o sumo de potência, não uma atividade pura; se pensa algo distinto dele mesmo, se pensa algo menos perfeito que Ele mesmo, e por isso não corresponde a sua perfeição”. Assim Aristóteles nos conduz à sua tese, que necessariamente segue ao conceito do Ser Divino: “o pensamento que se pensa em si mesmo, em que este ato criador goza eternamente sua própria e absoluta perfeição”. Vide a Filosofia da Liberdade de Steiner, para entender a relação entre o Pensar Divino e o pensar espiritual humano (o bastão).
Em terceiro lugar, como “Deus e Eu somos um”, na visão aristotélica, “Deus abraça com seu pensamento o Universo finito e se imiscui nas suas criaturas”. Por isso todos temos uma chispa divina em nós, representado pelo “bastão”. Aristóteles elegeu somente o espírito como imortal; a alma pode ser mortal, pois representa apenas uma vestimenta, um predicado, qualidades permeadas pelos desejos, como se comentou. Caso se consiga sublimar totalmente, pode-se pressentir desse envoltório. Por isso Aristóteles granjeia outro patamar de qualidade evolutiva, a qual estamos longe de alcançar. Pode-se dizer que somos todos platônicos. Todos. Cabe ao nosso esforço individual, em consonância com a coletividade e nosso trabalho moral no mundo (ora, convive et labora), almejar ascender na escala evolutiva espiritual, cujo objetivo será chegar ao “símbolo crístico”. O bastão (Eu) segurando a cobra (alma): pela cabeça (pensar), pelo meio (sentir) e pelo rabo (atuar), cujo sentido mais elevado traduz: só o espírito pode perdoar a alma nas suas 3 qualidades evoluídas redentoras (devoção – verdade – amor).
Comentários finais:
O “morder o próprio rabo” representa uma postura antiga, em que era preciso o esforço sobre-humano para conter os desejos anímicos, numa fase histórica em que o Eu não estava bem encarnado, o qual remonta à Atlântida e persistiu na antiga Índia. Hoje se presencia nas doenças psicossomáticas, quando não se consegue dominar seus impulsos ou suas pulsões. O que se precisa fazer? É preciso todo esforço para albergar o EU dentro de si. Ou seja, é preciso sair desta postura platônica, de brigar consigo mesmo (morder a si mesmo) e migrar para a figura crística, no sentido de centralizar-se em si, como um EU, para voltar a dominar a “alma pecadora”. É preciso acolher o Deus em si (o bastão), como necessidade histórica. Quem não fez no passado tem que aprender a fazer agora.
O “bastão segurando a cobra”, mostra o Espírito galvanizador da alma. O EU tem que segurar a alma, pois se é um espírito; a alma é um predicado, um complemento, para se relacionar no mundo. Não resta dúvida que se necessita da alma, mas não somos alma — somos espíritos. Por isso precisamos das duas características, tendo como enfoque o “bastão segurando a cobra”, na visão crística monista aristotélica. Ou seja:
PLATÔNICO: Princípio anti-luciférico ——– conquista da Liberdade, Individualidade e Poder —— pelo Conhecimento conduz ao Amor (sacrifício da alma, até sua destruição – doença e morte)
ARISTOTÉLICO: princípio pró-crístico ——– sacrifício da alma em nome de Deus em mim ——— pelo Amor conduz ao Conhecimento (salvação da alma: devoção – verdade – amor)
Ou seja, como foi amplamente argumentado, em tese TEMOS QUE EVOLUIR DE PLATÔNICOS À ARISTOTÉLICOS. No entanto como somos uma mistura, todos temos um pouco de platônicos e aristotélicas, com nuances para um lado ou para o outro. Precisamos das duas características:
- A alma platônica precisa do espírito aristotélico para viver, pois este lhe falta.
- O espírito aristotélico precisa da alma platônica para se relacionar com o mundo.
Antonio Marques