Eu sou o EU-SOU

Essa foi a resposta que Cristo deu à Moisés: “Ehjeh ascher ehjeh” (Êxodo 3,14). O que significa isso? Quem é o “Eu-sou”? Por que Moisés foi o portador da egoidade, do monoteísmo, para culminar na centralização do Eu? Aqui repousa um dos profundos mistérios do “Eu humano” (do espírito humano)…

Eu falei em “espírito”? Mas como é visto o “espírito” atualmente? Essa pergunta parece não ter mais cabimento nos dias atuais. Ele nem é mais cogitado nas discussões filosóficas ou científicas. Pela visão atual, não se precisa desse “acessório” para viver, trabalhar, etc. Afinal a própria Igreja, no Concílio de Constantinopla de 869, “decretou” que a partir daquela data o espírito não existe mais, apenas “alma e corpo”. Como se não bastasse essa distorção religiosa medieval, a Ciência atual “decretou” que também não existe “alma”; o ser humano é constituído apenas de “corpo físico”. Assim o caráter ternário (ou trimembrado = corpo, alma e espírito) foi “reduzido” à manifestação unitária…

É assim que se vive, se sente e se pensa. A “mente”, cada dia está se calcificando, esclerosando,… e o “coração”, que era “quente”, cada dia está ficando mais “frio”. A ciência e a filosofia, hoje, se contentam em ver, pegar erelatar os fenômenos. “Tudo” é manipulado pelo cérebro, frio e calculista; em laboratórios escrupulosamente técnicos, “assépticos”; e com selo de “qualidade total”. O próprio homem é visto como um mero acidente de percurso, nascido por “acaso” da poeira cósmica. Os profundos questionamentos, que no passado eram a pedra angular de toda boa escola de cultura, hoje ficam na superfície intelectiva das coisas e nos epifenômenos da natureza. Assim o homem, desde a sua tenra idade, absorve para a sua vida essa visão ingênua, simplória e medíocre, pois se sente apartado da realidade do mundo e da divindade. Por isso se denomina o pensar científico moderno de realismo ingênuo. A ciência assim, ao se fixar apenas na realidade física, reduz a liberdade humana, seus anseios, seus ideais, às leis e condutas impostas de fora, como “dogmas”; sejam eles, científicos, familiares e sociais. Impera hoje o medo, pois as normas impostas do exterior, na mentalidade humana, impingem condutas morais, científicas e profissionais. É o medo de ser criativo, de lutar por um ideal, porque para tudo que seria passível de realização e para todas as profissões, imperam as condutas e “as posturas de escolas”: os dogmas científicos! Como nasceu isso?

Esse modo de pensar moderno foi inaugurado por Immanuel Kant (1724-1804). Na sua “Crítica da Razão Pura”, as suas questões básicas são: O que eu posso saber? O que devo fazer? O que tenho direito de esperar? O saber científico e o exato estariam, para ele, somente no ideal científico da matemática e da física; a metafísica (a procura do homem pelo seu Eu, do mundo e de Deus) é um fracasso. Ele tentou explicar a origem e a constituição do universo sob a ótica newtoniana, de maneira puramente mecânica, sem a interferência do Criador. Observou apenas a maçã que cai pela ação da gravidade e esqueceu de fazer também a importante pergunta filosófica: como a maçã foi parar ali na ponta do galho, contra essa mesma lei física? Com Kant, o homem ficou amordaçado e engessado, pois o saber se restringiu ao fenômeno externo, não às coisas em si; restringiu-se à relação de causa e efeito que vem do próprio pensamento humano em relação aos objetos espaço-temporais. “O homem é um animal que, a partir do momento em que vive entre outros indivíduos de sua espécie, necessita de um amo.”1 Isso pressupõe a presença de um “amo”, um ditador, uma autoridade, um “dogma”, para se seguir, pois para ele, o homem busca a felicidade em duas direções: “uma tão decepcionante quanto à outra: 1º) o prazer sensível (ou o prazer pelo prazer), cujo abuso pode tornar-se uma tortura; 2º) a comparação de sua vida com a de outrem se verificará que se é dependente uns dos outros”. (Por isso a necessidade de um “amo”).

Portanto, para Kant, a busca da felicidade sempre leva o homem ao fracasso e a solução para ele é uma postura de “normas” (dogmas) no “racionalismo moral” (ou realismo ingênuo), na experiência do dever: “Só há direito pela lei”, dizia ele. Como não se consegue visualizar algo por detrás do muro do sensorial, procura-se subordinar a vida às quatro paredes dos “dogmas científicos”. Assim a filosofia kantista é a norteadora da modernidade, na sua visão míope sobre a totalidade humana. No fundo atesta o medo de inovar, de buscar novos horizontes, pois é muito mais fácil se basear no que está “escrito” na ciência empírica (na pesquisa mais moderna), não necessitando de desenvolver pensamentos nem questionamentos próprios…

Assim se seguiu Friedrich von Schelling (1775-1854): “o eu é causa-de-si, é a absoluta realidade; o eu é tudo, tudo é eu, ele é ato gerador de tudo”2, para terminar no “übermench” (super-homem) de Friedrich Nietzsche (1844-1900): “Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. (…) Ai, meus irmãos, esse deus, que eu criei, era obra humana e delírio humano. (…) Os deuses morreram desde há muito; e, na verdade, morreram de uma boa morte alegre, como cabe a deuses. (…) Um belo dia eles morreram ¾ de rir, no dia em que um deus proferiu a mais ímpia de todas as afirmações: Há um só Deus. Não terás outro Deus além de mim”3.

Esses “pensamentos” foram gerados “ontem”… Mas continuam a nortear a prática da vida atual, em todos os seus aspectos! No fundo todo esse processo de intelectualização reflete a maturidade humana perante o mundo. O que era “civis romanus” no começo da Idade Média, estava se concretizando o “individuum”. O anseio de “liberdade” gritava dentro d’alma. Liberdade das coisas do mundo e liberdade das coisas divinas. Só importa o homem despido de toda indumentária… Isso mostra uma evolução humana descendente, no aprofundar na “materialidade”.

Todo esse caminhar, até terminar o século XX, proporcionaram conquistas intelectuais, disputas acirradas entre operários versus patrões [nas figuras de Karl Marx (O Capital) versus Adam Smith (Riqueza das Nações)], crescimento vertiginoso das ciências tecnológicas, economia globalizada, capitalismo, materialismo crescente, etc. Mas trouxe, em contrapartida o que ninguém esperava: Um grande interesse humano em explorar todos os campos do conhecimento, extrapolando nos movimentos de vanguarda,hyppie, revoluções políticas, culturais, sociais, psicológicas, inclusive sexuais. O que se tinha polarizado entre os blocos do leste e do oeste, ou entre o comunismo e o capitalismo, veio a ruir na queda do muro de Berlim, no fim do Apartheid da África do Sul e no fracasso da política do leste europeu. Inclusive a entrada da psicologia no mundo foi interpretada inicialmente, como um “movimento anti-tecnicista”, uma resposta à hipertrofia intelectiva do século XIX. Apesar do seu caráter inicial simplório com Freud, fixando-se apenas no caráter sexual, a psicologia recolocou o homem no seu verdadeiro patamar de ser humano, reconquistando a sua “psiquê” (ou alma), principalmente com Jung. Nesse sentido a humanidade começou a adentrar no mundo espiritual (através da psicologia) e não se deu conta ainda dessa realidade.

Justamente por causa da inconsciência humana no trato do desenvolvimento do pensar, retrocedeu de novo, ao se deixar seduzir pelo “canto da sereia”; ou seja, pela “Ciência hi-tech”. Isso ocorreu quando a própria Psicologia acabou de enterrar definitivamente a psiquê (a alma). Afinal, como sentencia Popper, a quem se atribui a palavra mais moderna da ciência, apenas existem circuitos integrados no ser humano, uma rede de linhas excitatórias e inibitórias de projeção (feedforward) e de retroação (feedback). Reduzimos o homem ao seu corpo físico. Apenas a química (serotonina, adrenalina, etc) passa a ser a responsável pelo pensamento, sentimento e atuação corporal.

É impressionante observar e lamentável constatar que, quanto mais o ser humano deseja a “liberdade patrocinada pela técnica”, a qual se traduz na supremacia do “imperium hominis”, se entrega cada vez mais à imposição dos “dogmas” externos, sejam eles científicos, sociais, profissionais, religiosos, etc. (Kant tinha razão!). Dizendo de outra maneira, a hipertrofia do Ego, tem levado o ser humano aos problemas atuais. Ao mesmo tempo em que se patrocina a evolução do intelecto, coloca-se uma mordaça nesse mesmo intelecto, com a presença de um amo (o dogma, a censura, o poder externo): o homem não pode pensar por conta própria (o amo é o “super-ego” censor). Não deixa de ser o retorno à velha cartilha religiosa (só que agora revestida com a roupagem da Ciência).

Resumindo, o homem nasce puro, virginal. A evolução o leva à “intelectualidade” e, portanto, à consciência das coisas terrenas. Isto o capacita a conquistar um Ego, livre, totalmente livre, que é inclusive capaz de se julgar “o todo poderoso”, totalmente independente da natureza e da espiritualidade. Assim se vive atualmente. Também se chegou numa encruzilhada crucial: após se estar no fundo do poço, pode-se descer mais ou pode-se começar a subir. Ou seja, pode-se ser mais materialista, mais tecnicista, mais poderoso; ou pode-se começar a descortinar a essência do ser humano a partir de uma nova abordagem. Mas existe o perigo que ronda atualmente qualquer tentativa de trazer novos elementos para a vida pensamental científica: o reflexo do passado, na institucionalização dos dogmas “científico / religioso / político / econômico”, que são os novos “amos”, como se afirmou. Estes desejam ditar normas de posturas e costumes entre os povos, cujo objetivo é o controle supremo de tudo, ao se desejar planificar tudo, estandardizar tudo, sob a fachada de blocos ou grupos: econômicos, científicos, culturais, políticos, profissionais, etc. Nesse sentido o egoísmo (que é normal dentro do “indivíduo” e se denomina deliberalismo) se projeta para fora, como “egoísmo coletivo”: na política (viver social) passa a vigorar a estatização (o egoísmo estatal) e na economia (atuar no mundo) passa a vigorar o neoliberalismo (o egoísmo na economia). Suprime-se a liberdade humana e coloca-se o amo no seu lugar. O homem passa a ser “controlado” por uma moralidade estatal (política arcaica) e atrelado a conduta de “qualidade total”, como uma máquina (economia perversa). Assim, o que no passado era realizado pelo Estado mercantilista, na forma de imperialismo político, atualmente a economia gananciosa assume esse papel, com o nome de neoliberalismo. Assim estão também polarizados os Partidos Políticos: são os representantes desta polaridade (estatização e neoliberalismo).

Urge, no entanto, descortinar a visão global do ser humano, em que o caráter verdadeiramente científico seja o escopo ou alicerce das coisas anímicas e espirituais. Inclusive se o mundo está mudando no seu contexto geo-político-econômico, é porque o homem está começando a mudar a partir do seu interior. Assim se poderá descortinar que atrás do Ego (intelecto), existe o Eu, o “pensar puro” (Hegel). Somente com o desenvolvimento “espiritual” (do Eu) se poderá atingir a “verdadeira liberdade”. Nesse sentido, a primeira tarefa humana atual é a reconquista da essentia humana (o Eu humano). Só assim poderá surgir um centro único de onde partem os impulsos norteadores da alma e do corpo. Em seguida é preciso resgatar os princípios básicos de humanidade, os quais têm a ver com o viver com o outro, o viver em comunidade, em sociedade. Tanto faz se sãocomunidades social, profissional, familiar ou conjugal. No fundo, toca-se também no aspecto da sexualidade, pois envolvem dois seres humanos emcomunidade de vida. Para se atingir ao macroorganismo social de convivência (o social), é preciso crescimento dentro da pequena comunidade familiar ou conjugal, porque para viver assim é preciso abrir mão de muitas regalias, que individualmente (egoisticamente) estariam facultadas. Mas o “viver junto” é um aprendizado social e cristão; isto é, de olhar não a si, mas o outro, de satisfazer as necessidades do outro. Aristóteles falava que “o homem vem da pólis e retornará à pólis”; isto é, ele vem de uma comunidade de seres iguais a ele e retornará ou viverá entre seus pares. Portanto o viver em sociedade é uma necessidade humana e só assim se poderão concretizar as evoluções individual e coletiva.

Mas ainda não abordamos “o EU-SOU”. Seguimos a “linha torta” da evolução descendente humana, pois o homem precisa dessa “linha torta” para evoluir (e só Deus escreve certo, …. através das linhas tortas). Vamos retornar à pergunta deste artigo, para pegar a “linha mestra”. Onde foi que paramos?….

Moisés era descendente da tribo israelita de Levi, que se supõe ter vivido muito provavelmente na época do faraó Ramsés II (1292-1225 a.C.), período no qual o povo de Israel estava cativo por 400 anos em terras faraônicas. A sua biografia começou com o “cestinho” na água, quando foi parar nas mãos da filha do faraó. Esta o criou como sendo um egípcio de alta estirpe. Este “cesto trazido pelas águas” traduz que ele havia passado por uma iniciação espiritual, comum naquela época. O que visava essa iniciação? O aspirante deveria se submeter a um sono de três dias, em sarcófago, no sentido de oespírito sair do corpo e buscar Osíris no “disco solar” (In solem posuit tabernacula sua)4. Só que ele trazia “de berço” (na imagem do cestinho) essa iniciação; ou seja, ele conquistou essa qualidade em épocas anteriores de vida.5

Apesar de israelita, foi criado na cultura egípcia por 40 anos, participando inclusive do processo de iniciação, comum entre os varões da família faraônica e dos sacerdotes-médicos (serápicos). Relata a Bíblia que ele, após matar um feitor egípcio, o qual havia praticado atrocidades contra alguns hebreus, fugiu para o deserto de Madian. Fica aí por mais 40 anos, um outro centro de iniciação, a Escola de Jetro (Raguel), para seu “desenvolvimento espiritual”. Seu casamento com Séfora, uma das sete filhas de Jetro, poderia traduzir que ele “desposou” uma das sete virtudes espirituais desse centro de mistério arábico. Antigamente as sete artes eram expressas nas figuras de sete virgens. Assim Moisés desenvolveu um modo de pensar autônomo, novo para a época, um pensar egóico, centralizado naalma racional (ou logistikón, segundo Platão — na cabeça). Assim ele se candidatou para uma outra importante missão: receber o Eu-crístico. Como se está vendo, somente após a conquista do “intelecto”, torna o homem candidato a aspirar o crescimento espiritual = desenvolver o “pensar puro” (Hegel) ou o “pensar o próprio pensar” (Steiner).

Essa era também a missão do antigo povo hebreu: desenvolver o “intelecto”. Não é a toa que o judeu é dado aos números e ao sistema financeiro internacional. Javé (o Cristo) solicita que Moisés procure o faraó, para pedir-lhe permissão para que seu povo (israelita) faça “sacrifícios” no deserto6. Mesmo que se quisesse fugir para a Palestina, não se estaria saindo do domínio egípcio, pois toda essa região pertencia, nesse tempo, ao Egito. Para essa missão, como já utilizasse um pensar novo (egóico, intelectual) para a época, ele foi acompanhado pelo seu irmão mais velho, Aarão, que ainda tinha a antiga vidência do povo e falava de uma forma compreensível (onírica, provavelmente em parábolas) aos egípcios. O que os temerosos egípcios perceberam, com as dez pragas, foram processos que se passaram dentro de suas almas (centradas no sentimento, no coração sistólico). Assim estes foram “atormentados animicamente”, com “imagens”, que se poderiam traduzir hoje, como “histéricas” (ou psicóticas).

Do rio Nilo até a Palestina, a pé, demora-se 40 dias em linha reta, relata Emil Bock em seu livro “Moisés e sua época”.7 Os 40 anos de peregrinação, num ambiente arenoso e pedregoso do deserto foram o sacrifício que o antigo povo hebreu teve que se submeter para poder desenvolver o novo pensar. Essa marcha de 600.000 pessoas foi marcada pelas condutas moraisextremistas da disciplina mosaica, com grande mortandade. Isso refletiu no sacrificante trabalho a que “o povo escolhido” teve que se submeter perante uma nova forma de pensar. Exigia-se o abandono das antigas formas pensamentais (oníricas). Inclusive apenas seus descendentes puseram os pés na Palestina. Nessa peregrinação, a sua maior permanência deve ter sido na região de Cades-Horeb, conforme nos relata Bock. Cades significa “santuário” e era onde albergavam as correntes espirituais arábicas no deserto. Assim nesse local foi realizada a reunificação das antigas correntes irmãs, que haviam se separado no passado (Ismael = árabe e Israel = judeu). O “Santuário de Horeb” fica mais ou menos na metade do caminho entre o Nilo e a Palestina. Ou seja, provavelmente fizeram o caminho em linha reta, mas demoraram muito nesse local (“para sacrifício ao Senhor”), pois mesmo se tivessem ido diretamente à Palestina, como se comentou, não teriam saído do domínio egípcio.

Através da “sarça ardente”, Moisés entra em contato com Yahweh (Jeová), o mesmo Deus (Eloim) dos patriarcas: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó” (Êxodo 3,6). É o mesmo Shiva dos indus, Ahura-Mazdao dos persas, Osíris dos egípcios ou Javé dos hebreus. Pode-se dizer que Deus reflete a sua “luz” sobre outros seres e assim o Seu brilho se manifesta, “como a lua reflete a luz do sol”. O Deus para o povo indu ainda brilhava no zodíaco estelar, para os persas já habitava o Sol, para os egípcios estava no “disco solar” (periferia solar) e para os hebreus chega à Terra (através da “sarça ardente”). Finalmente Ele se torna o Verbo encarnado com o Cristo. Essa evolução, da forma imaterial divina dos indus, da cronologia persa, da astrologia egípcia, da geologia israelita e do “carnal cristão”, mostra também a evolução do pensar humano com relação à divindade que, com o passar do tempo, o homem já pressente a descida desse Ser Espiritual até chegar perto de si.

Assim Moisés, após ter treinado o pensar egóico, nas duas correntes de desenvolvimento, a egípcia e a arábica, recebeu a mais alta incumbência: de ser o anunciador do Eu cósmico.

É interessante observar que a própria história oferece os subsídios necessários para a compreensão dos profundos mistérios que se encontram por detrás do sensório. O pensar onírico (centrado no coração sistólico) preponderava no povo egípcio (por isso o egípcio afirmava que o homem pensa com o coração), mas Moisés consegue desenvolver uma nova faculdade, que é o pensar egóico (centrado na cabeça), precoce para a época. Só após essa última forma de pensar estar madura, pode-se almejar o pensar mais elevado, onde se situa o Eu, o espírito (centrado no coração diastólico, no repouso cardíaco). Só que este pensar independe da matéria, da química, porque ele é “exterior e enraizado na alma; ele vem de fora”, conforme sentenciam Platão e Aristóteles. Só através do individualismo éticoe da atuação moral, além de exercícios meditativos específicos, pode-se atingir a esse pensar espiritual, que Fichte denomina de pensar puro e Hegel de pensar espiritual.

Portanto, a humanidade primitiva vivia numa forma pensamental sonambúlica, onírica. Essa fase de consciência corresponde ao período egípcio. Ainda hoje se guarda um pouco dessa qualidade, entre as pessoas mais simples ou mesmo quando se recorre a certas imagens pensamentais fantasiosas. Seria como a jovem “sonhando” com seu “príncipe encantado”. Aqui se mescla o “sentimento” com um pensamento fantasioso. Para se chegar ao novo patamar evolutivo, o qual se trata do pensar egóico, técnico, intelectual (na cabeça), necessita-se de um esforço interior, de estudo, de freqüentar os bancos escolares. Somente após se conquistar esse pensar, pode-se candidatar ao pensar espiritual. Seria como uma planta que cresce e desenvolve, até chegar ao estágio de maior sublimação, no qual ela se prepara para receber a flor. A flor simboliza a maior realização que uma planta pode almejar, através da qual o divino, a alma cósmica, toca de fora o vegetal. Nesse sentido, a partir do despertar do pensar egóico, o qual já faz parte do homem atual, pode-se almejar a última forma de pensar, que corresponde ao pensar espiritual, centrado no Eu. Esta forma pensamental comunga com o mundo das Idéias. Não existe algo mais alto do que isto, porque aí se toca o mundo espiritual, a divindade: pode-se vivenciar Deuspensamentalmente.

Além das qualidades anímicas (da alma ou do psiquismo), as quais correspondem “pensar, sentir e querer” (viver no mundo), existe uma instância superior, o Eu ou espírito humano ou Self ou Noûs (dos gregos). Assim Aristóteles aponta para essa realidade superior: “A natureza e essência do sumo princípio é espirito imaterial, ato puro, vida serena e bem aventurada, livre de toda interrupção. (…) É uma essência eterna e imóvel que transcende todo o perceptível pelos sentidos. Não pode ter magnitude ou extensão alguma; é uma unidade indivisível, impassível e imutável. (…) É o sumo princípio de Deus. (…) Isto é o Noûs.”8

Assim Jaeger, famoso comentarista de Aristóteles, dá prosseguimento a esses questionamentos lógicos: “Irresistivelmente nos sentimos arrastados para a questão: qual é o conteúdo da atividade do Noûs e que relação impera entre o conteúdo de seu pensamento e sua perfeição? Se não pensa nada, está em repouso, e é por ser um sumo de uma potência, não uma atividade pura; se pensa algo distinto dele mesmo, pensa algo menos perfeito que ele mesmo, e por isso não corresponde a sua perfeição. Assim Aristóteles conduz seus ouvintes a uma conclusão, que necessariamente se segue ao conceito do Ser Divino (isto é, perfeitíssimo): “o pensamento se pensa em si mesmo”, em que este ato criador goza eternamente sua própria e absoluta perfeição.”9 (grifo nosso).

O Espírito é, portanto, o viver no “pensar puro” e tem a ver com o “pensar o próprio pensar”. Já que a divindade suprema (Deus) vive pensando na sua própria perfeição (em si próprio), o homem ao vivenciar seu próprio pensar, estará tocando o “mundo das Idéias” ou seja, o mundo espiritual. Eis a nossa tarefa para o futuro.

Só através de um esforço concentrado em seu próprio ser (Self) pode-se despertar o pensar espiritual. Não com o intuito de se viver na abastança espiritual, a qual poderia sugerir uma fuga luciférica10 da realidade do mundo. Não! A conquista da própria individualidade (do Eu) deve servir apenas de elemento centralizador dos impulsos anímicos, dos desejos e das paixões, que pululam como caráter policromático na alma, pois como sentencia Platão: “o mal existe na alma humana”. Assim, o eu-sou é uma fagulha, uma chispa do EU-SOU, do Lógos divino, de Deus, “exterior e enraizado na alma” (Deus em nós). Só que não há distinção entre eu e Deus, pois segundo Aristóteles, “Eu e Deus somos um”! Este objetivo, uma vez alcançado, serve para retornar ao “pensar intelectual” (ou eu-empírico de Fichte) para a realização da grande meta de tornarmo-nos “educadores” (ou letrados segundo Fichte). Ou seja, do desenvolvimento do “individualismo ético” (conquista de virtudes), deve-se descer desse patamar e realizar a meta mais importante: sermos “moralmente produtivos”.

Dr. Antonio Marques


1

JERPHAGNON, L. História das grandes filosofias. São Paulo : Martins Fontes, 1992, p.219.
2

Idem, p.276.
3

Idem, p.290.
4

“No sol o nosso Demiurgo (Deus) fez a sua morada”. Para os antigos, Osíris habitava o disco solar. Inclusive o faraó Akenaton (Amenophis IV) instituiu o Deus único representado pelo sol, que ilumina a todos. Para os antigos hebreus, o Deus se aproximou da Terra, na imagem da “sarça ardente” e no fogo que saia da tenda de Moisés (manifestação telúrica).
5

Rudolf Steiner esclarece que Moisés recebeu o corpo etérico de Zaratustra, pois era discípulo deste e assim pôde desenvolver qualidades além da sua época, pois o corpo etérico é a “matéria supra-sensível” onde se desenvolve o pensar egóico. Pôde assim nele desabrochar a forma de pensar moderna, precoce para a época. Por isso ele fala que: “minha boca e minha língua são pesadas” (Êxodo 4,10), para aquela época. Ele elevou o pensar que era onírico entre o povo egípcio (estava centralizado numa parte mais primitiva da alma — no sentimento — no coração sistólico), para o domínio da lógica, para a alma logistikón (o Ego), centrado na cabeça, — o pensar téchnai (Platão) ou simplesmente “pensar intelectual”.
6

A influência do deserto é hostil, impiedosa e massacrante, pois aí a força terrestre se mostra na sua verdadeira face, com chão duro, seco e “morto”. O contrário ocorre quando a terra é coberta por uma vegetação luxuriante. Neste caso diz-se que ocorre uma influência polar que vem do “cosmo”, pois o manto verde funciona como um isolante das manifestações telúricas.
7

BOCK, E. Moisés e sua época (vol.II), Edições Religião e Cultura : São Paulo, 1992, p.53.
8

JAEGER, W. Aristóteles. México : Fundo de Cultura Econômica, 1992, p.396.
9

Idem, p.397.
10

Ser luciférico, como o nome diz, é o “portador da luz”. Só que essa “luz” é ofuscante e obnula os sentidos, pois “deseja” retirar o ser humano da sua tarefa terrestre e remetê-lo às esferas paradisíacas inebriantes da inconsciência. Pode ser representado pelas pessoas que fazem uso de drogas alucinógenas. Estas promovem sublimação dos sentidos, fuga da realidade, estados eufóricos e fantasiosos (psicótico).

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