Metodologia em Medicina Antroposófica

Algumas pessoas desinformadas comentam que a Medicina Antroposófica (M.A) carece de um critério científico, que ela é empírica, que não é reconhecida, etc. Quem assim pensa, mostra total ignorância nesses assuntos. Para esclarecer esses temas, vamos abordar neste artigo, em primeiro lugar, como se processa o conhecimento científico, para situarmos onde se encontra a M.A no contexto científico mundial. Em segundo lugar, é preciso esclarecer que um conhecimento empírico é aquele que se baseia somente na experimentação e isso é apanágio da medicina acadêmica-alopática, da ciência tecnológica atual, como se verá. A M.A parte de um conhecimento teórico bem fundamentado cientificamente e só no final se baseia na experimentação. Isso tem a ver com a sua metodologia dedutiva goethiana-steineriana, como se comentará a seguir. Em terceiro lugar, ela é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como “prática médica”, através do Decreto 21/93, de 10.12.93. Isso significa que não é uma especialidade nem uma medicina alternativa. Qualquer médico pode ampliar os seus conhecimentos e recursos terapêuticos com a M.A.

É preciso começarmos pelos princípios da CIÊNCIA. Das duas metodologias científicas – dedutiva e indutiva – a primeira é uma forma de raciocínio que parte do geral, do organismo todo, para chegar ao detalhe, ao órgão, ao sistema, à célula, à substância química. O mais importante nesse caminho são os argumentos – no nosso caso chamam-se semióticos (sinais e sintomas da doença), o raciocínio que se emprega para levantar a história clínica do doente. A conclusão ou diagnóstico deverá ser mera formalidade. Por isso se diz que a clínica é soberana e os exames laboratoriais são considerados exames complementares (os que “complementam” o raciocínio). É um caminho puramente “dedutivo”, pensamental. Mas existem duas formas de “deduções”: as imediatas (ou axiomas) são proposições verdadeiras não demonstráveis. Ex: Existem doenças e doentes. É uma frase lógica e completa em si mesma. Toda ciência (inclusive a matemática, a física, etc.) precisa de parâmetros axiomáticos, que servem de apoio para se entender qualquer problema. Já as deduções mediatas necessitam de vários argumentos, que se encadeiam uns aos outros, até chegar a uma conclusão. Esta última forma é a que se utiliza mais rotineiramente nos raciocínios científicos e na M.A. Ex: Um paciente reclama de intolerância ao leite, gases intestinais, cólica, halitose, fezes ácidas, etc. (os argumentos semióticos); portanto, ele apresenta “dispepsia fermentativa” (a conclusão, o diagnóstico).

Depois que se partiu do geral para o particular (dedução), pode-se fazer o caminho inverso, do detalhe ao todo. Denomina-se agora processo indutivo. Só que, na “indução aristotélica” (chamada formal ou completa), visa-se apenas a ordenar ou detalhar o que já é conhecido. Ex: No paciente acima, pode-se pesquisar, com exames laboratoriais, se o processo fermentativo se transformou em inflamação intestinal (colite) ou em uma doença mais séria (diverticulite). Nesse sentido, o método científico dedutivo abarca dentro de si as duas possibilidades: o dedutivo propriamente dito e o indutivo. Ou seja, no primeiro caso, parte-se do “todo”, da fisiologia no exemplo, com objetivo de se chegar a uma conclusão ou diagnóstico (caminho dedutivo); em seguida, pega-se um “detalhe clínico” para entender melhor o que está ocorrendo (caminho indutivo).

Só que, com o passar do tempo, a metodologia indutiva divorciou-se da origem dedutiva, especializou-se nas ciências tecnológicas e é utilizada pela medicina alopática, fazendo com que se acredite hoje que o ser humano é também uma máquina, um computador. Como se afirmou, o “processo indutivo” é uma “especialização” dos preceitos dedutivos, fixando-se numa particularidade apenas: a indução, o detalhe, a célula, a substância química. Parte-se de uma coleção limitada de fatos conhecidos que se descobre como válidos, para assim serem estendidos a todos os análogos, ainda que não tenham sido pesquisados um por um. Ou seja, quando uma substância x é descoberta, “supõe-se, induz-se” que seja ela o elo importante de todo o conjunto, do geral. A conclusão ou diagnóstico passa a ser mais importante, pois se satisfaz com o rótulo da doença, cujo intuito é estabelecer dados estatísticos. Seria como se se tivesse um pedacinho de um “quebra-cabeça” e, com isso, se quisesse descobrir todo o jogo (isto é, do particular se “induz” o geral). Acaba-se, assim, por criar verdadeiras “imaginações fantasiosas” sobre o conjunto, o organismo humano. Desse modo, são formulados os axiomas, as suposições científicas, as hipóteses, que beiram a dogmas, mas não correspondem à realidade do todo, somente àquele “pedacinho”, àquela parte, da descoberta clínica. Ex: O nosso paciente apresenta intolerância à lactose no exame laboratorial. Isso mostra apenas a incapacidade de digerir a lactose, mas “supõe-se” (induz-se) que essa intolerância se estenda a “todos” os carboidratos.

Esse “divórcio” (entre a Ciência Indutiva e a Dedutiva) fez com que se perdesse a visão global sobre o sistema de forças presentes na natureza e no ser humano. Os “elementos causais” foram jogados no “transcendente”, no que não se pode abarcar mentalmente (Kant). Atualmente vigora apenas o “critério de falseabilidade”: “O que diferencia uma teoria científica de uma não-científica é a possibilidade que a teoria científica tem de ser falsificável. Ou seja, ela deve ser empiricamente refutada” (Popper). Isto é, não importa mais o conhecimento, o raciocínio dedutivo, pois basta fazer o teste de falseabilidade, para evidenciar o “erro” no enunciado (ou na pesquisa). Constatado esse, busca-se o seu contrário (o que é “aproximadamente certo” é aceito por exclusão do errado). Por isso se fixa na estatística com o intuito de desenvolver estudo “correlativo”. (Correlação significa estabelecer, entre duas variáveis, uma relação quantitativa que, embora sugerindo alguma conexão entre ambas, não está suficientemente estabelecida, para garantir a existência de uma dependência funcional). Isso pode ser melhor presenciado no trabalho randomisado pela medicina oficial (iniciado em 1955), em que um grupo de doentes é dividido em dois subgrupos, sendo que um recebe remédio verdadeiro e outro recebe “placebo” (remédio que não é remédio, ou seja: é falso). “Correlaciona-se”, assim, entre esses dois subgrupos, a eficácia terapêutica dos medicamentos alopáticos. Não se observam as diferenças individuais dos pacientes (peso, idade, etc.), o aspecto moral, o efeito psicológico do placebo, etc. Concluindo, a medicina acadêmica (ou alopática) utiliza a “metodologia correlativa randomisada indutiva empírica”. Ela é dualista, indutiva, experimental (empírica), cartesiana, baconiana, kantista, Popperniana e platônica.

É preciso fazer uma ressalva. Não resta dúvida de que o método indutivo tem sua aplicabilidade nas ciências tecnológicas, e está aí o seu mérito. Esse estrondoso desenvolvimento hi-tech influenciou a nossa cultura, a nossa civilização industrial e a medicina, principalmente, com novos medicamentos e controle de muitas doenças. Só que essa visão tecnicista-materialista extrapolou para o âmbito do que é “vivo”. Aí está o erro crasso, pois a sua utilização unilateral mostra-se incompleta, porque fica presa apenas à experimentação (empirismo), aos poucos elementos analisados, à análise quantitativa (correlação). Mesmo com uma grande “amostra” imparcial de todos os casos possíveis analisados, consegue-se apenas chegar a uma alta “probabilidade correlativa” de acerto. Por isso, mesmo as suas premissas sendo verdadeiras, a conclusão “deve ser” provavelmente verdadeira, mas “não necessariamente” verdadeira. Essa, ao se tentar encaixar no geral, nem sempre corresponde ao esperado, pois a pesquisa partiu do detalhe, do fragmento, para querer universalizar em seguida. Ex: O médico que se fixa apenas em solicitar exames (como no exemplo acima), na esperança de que estes esclareçam o problema, “induz” de antemão uma resposta (deve ser tal coisa!). Se o resultado for positivo (a bactéria, o verme), poderá indicar o medicamento correto, mas não vai saber a origem do mal, porque afinal o “bichinho” é apenas a conseqüência. Se, por outro lado, não encontrar nada nos exames, o médico estará perdido, por lhe faltar o caminho anterior “dedutivo”.

E qual é a base da M.A? É a ciência dedutiva goethiana-steineriana. Aristóteles forneceu os argumentos científicos (dedutivos), citados acima. Goethe elaborou essa metodologia com conceitos mais modernos, como se comentará abaixo. Rudolf Steiner elaborou os fundamentos axiomáticos dessa ciência, que se denomina de Ciência Espiritual Antroposófica. A Antroposofia, usando palavras de seu criador, é um caminho cognitivo pelo qual deveria ser estabelecida uma ligação entre o que existe de espiritual no homem e no universo. Por isso a M.A vê que o homem é muito mais do que uma mera máquina. Seu conhecimento a respeito dele e da natureza baseia-se numa realidade diferente: o homem é considerado como um ser corpóreo, psíquico e espiritual. No caso específico da M.A, seu objetivo básico é chegar à “ideia do fenômeno” (é entender a fisiopatologia, para estabelecer uma “conduta terapêutica causal”). E como disse Goethe, “Fisiologia é o conjunto orgânico sob forças do espírito”.

Como se processa esse caminho científico dedutivo? Parte-se primeiro da observação do fenômeno, com total isenção de pré-conceitos. Em segundo lugar, associam-se os argumentos científicos mediatos (categorias e silogismo aristotélicos, roteiro científico goetheanístico e descobertas científicas atuais, como se comentará a seguir) no sentido de se chegar ao terceiro patamar da pesquisa: a tese, a conclusão, a ideia do fenômeno ou ao diagnóstico. Pode-se resumir assim o caminho científico dedutivo goethiano, conforme o esquema: “observar, intelectualizar e intuir”.

Método Científico Dedutivo Goethiano da Medicina Antroposófica

ObservarDiscernir, calcular, medir, pesarDescobrir, inventar, intuir “contemplar”
Órgãos físicosIntelectoIdeia
Corpo físicoPsiquê (alma)Espírito (Eu ou Self)

1) OBSERVAR significa se entregar à experiência pura (empirismo). Ou seja, deixar o fenômeno falar por si, sem a interferência do observador, mas com a plena presença do espírito. Forma-se assim a “imagem” do objeto dentro da mente.

2) INTELECTUALIZAR significa fazer as correlações necessárias a partir dos conhecimentos teóricos, das descobertas científicas e das experiências próprias. Goethe elaborou a base científica para se assentar o conhecimento do mundo orgânico (do vivo). Para isso ele fala que é preciso conhecer: …”os hábitos (HISTÓRIA NATURAL), a natureza material como força e sua relação espacial (DOUTRINA da NATUREZA), as “partes” (ANATOMIA), as “partes” da matéria (QUÍMICA), o conjunto do vivente segundo forças físicas (ZOONOMIA), o conjunto vivo subordinado a forças espirituais (PSICOLOGIA), as formas nas suas “partes” ou no “todo” (MORFOLOGIA), o conjunto orgânico sob forças do espírito (FISIOLOGIA)” (1). Esse é o alicerce que as Faculdades de Medicina deveriam fornecer, para se somar com as descobertas científicas recentes. Qual o objetivo disso tudo? É aprender a formular hipóteses. Estas devem ser elaboradas através das deduções mediatas, como se viu (repetindo: através de vários elementos do problema, procura-se chegar a uma conclusão, conceito, tese ou diagnóstico). Para isso se utilizam as categorias aristotélicas” (2). Estas representam as relações entre sujeito e predicados, com a finalidade de se conhecer as estruturas objetivas do ser. Primeiro, constata-se o fenômeno ou o objeto (no nosso caso, é o paciente): ele em si representa a “essência”, por existir de fato. Em segundo lugar, associam-se seus predicados: qualidade, quantidade, tempo, lugar, posição, relações, estado, ação e paixão. Exemplo: Sr. Júlio (essência), um (quantidade), funcionário público (qualidade), de temperamento depressivo (paixão), está totalmente curvado (posição), contraído (ação), suando (estado), piorando à tarde após o almoço (tempo), apresenta diarréia (relação) e cólica abdominal (lugar). Este levantamento intelectivo da história clínica (ou anamnese) é um caminho necessário para se chegar à 3a etapa deste processo científico dedutivo.

3) IDEAR significa ter a certeza interior do fato observado, ao se atingir o reino das causas (formar a ideia). Para Goethe, o mais importante de toda a experiência é elaborar a “ideia” dos conteúdos (que ele denomina de “contemplação” ou “intuição”) para que esteja congruente com o fenômeno exterior. Hoje não se acredita mais na própria capacidade pensamental, apenas no que a estatística dita dogmaticamente, na “medicina baseada em evidências”. É preciso entender, de uma vez por todas, que os conceitos que se têm das coisas, de um lado se manifestam na natureza, no organismo, na doença; do outro lado se manifestam no pensamento. O processo que atua no pensar é o mesmo que permeia a natureza (no mineral, no vegetal, no animal e no ser humano). A “idéia” se manifesta em ambos: uma parte é percebida pela mente e a outra se manifesta no mundo físico. Por isso se denomina de intuição ou contemplação essa capacidade de intuir, de captar o mundo das ideias (o mundo espiritual) presente na natureza. Ou seja, o nosso pensar faz parte da realidade do mundo existencial. Por isso a nossa relação íntima com os fenômenos, pois viemos da natureza. Pode-se dizer também que o espiritual (o mundo das ideias) permeia tudo, tanto o nosso pensar como o mundo fenomenológico. “Deus está em tudo”.

Nesse sentido trabalha-se com a realidade fenomenológica. O que significa isso? No sentido aristotélico, os “elementos causais” (espirituais) em comunhão com sua “manifestação física”. Pode-se compreender assim: a partir da “imagem” formada na mente, trabalha-se intelectualmente com uma seqüência de argumentos dedutivos, no sentido de se chegar ao fenômeno fundamental (para captar a “ideia” que vive por detrás do fenômeno). Assim o diagnóstico dedutivo adquire uma abrangência muito maior do que é dado atualmente. Por isso a M.A é chamada monista, dedutiva, experimental (mas não empírica), aristotélica, goethiana, steineriana.

Para o médico que lida diretamente com os “seres vivos”, fica a pergunta crucial: Deve-se considerar a medicina apenas como “Ciência Indutiva”, onde se utilizam somente os argumentos tecnicistas-empíricos-indutivos, ou se deve considerá-la apenas como “arte médica”, onde somente o caráter dedutivo seria preservado? A resposta é: precisa-se de uma metodologia científica que atinja os dois aspectos: o humano e o tecnológico. Isso só se se visualizar o “todo”, como exposto neste artigo, através da Ciência Dedutiva Goethiana-Steineriana, pois esta engloba “o dedutivo e o indutivo”, abarca a fenomenologia e reconhece a interação espiritual-psico-somática.

(1) GOETHE, Ensaios Científicos. São Paulo : Ad Verbum/Bárány, 2012, p.30.

(2) ARISTÓTELES. Tópicos. São Paulo : Victor Civita, 1978, p.11.

Dr. Antonio Marques

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