“Da terra, o Senhor criou os remédios, e o homem de bom senso não os despreza.” (Eclesiástico 38,4). Assim os antigos viam os “remédios”, como uma dádiva divina ao homem carente de saúde. Mas o que traduz essa palavra? Re- significa “repetir, refazer” e -médio significa “meio, através de”. Ou seja, “por meio dele se refaz” a ligação das forças espirituais e o doente. Portanto, através do re-médio conseguia-se despertar as forças curativas (espirituais) que ficaram adormecidas ou que sofreram um dano, um trauma. Só que essa grandiosa visão foi se perdendo com o passar do tempo e hoje os “remédios” se transformaram em “drogas”. De onde vem essa visão primordial das coisas?
No antigo Egito, existiam a medicina sacerdotal e a medicina profana. A primeira era realizada pelo sacerdote-médico, nos templos à Serápis (daí vem a palavra therapy, terapia), cujo objetivo era a transformação interior do paciente. A segunda forma era utilizada pelos “práticos”, ou seja, pelos “especialistas” em determinadas doenças. Heródoto (em 450 a.C.) dizia: “No Egito, cada médico só trata de uma doença”. Essa forma visava atuar sintomaticamente em determinadas doenças, cuja finalidade era um tratamento mais rápido, emergencial. Com o passar do tempo, essa última forma foi se hipertrofiando e ancorada na evolução tecnológica, trouxe descobertas e resultados mais rápidos e mais convincentes.
A medicina sacerdotal praticamente desapareceu. A medicina antroposófica tenta resgatar aquele antigo saber, ao procurar entender a complexa “fisiologia” humana, a qual é resultado das interações do corpo, da vitalidade (etérico), da alma e do espírito. A cura, nesse caso, visa atingir a globalidade humana e não obter uma “semi-cura”. Não se têm a célula ou o vírus ou a bactéria, como os causadores da doença, mas o ser humano. De agente passivo, ele se transforma em uma pessoa mais consciente, quando pode participar, com todo o seu ser, do processo de cura que, no fundo, passa a ser uma “auto-cura”. As atuações médica e terapêutica devem apenas auxiliar nesse importante processo!
O ser humano e o remédio apresentam entre si uma relação muito íntima, muito antiga e provêm de uma mesma origem. Isso se pode constatar, por exemplo, na similitude entre a clorofila (seiva da planta, de cor verde) e a hemoglobina (sangue, de cor vermelha). Ambos portadores de quatro núcleos pirrólicos e metais (magnésio na clorofila e ferro na hemoglobina), como “uma moeda de duas faces”. Através da evolução, o homem se afastou dessa realidade primitiva. É preciso agora re-fazer essa ligação, para compreender os mistérios da natureza, a partir de conexões mais amplas.
A planta é um ser polar, entre a flor e a raiz, entre o céu e a terra. Na ponta do galho temos o botão floral, todo concentrado, fechado. De repente ele se abre, para nascer a flor, onde ocorrem a sublimação da matéria, a combustividade, a cor, o perfume. Isso se traduz como “catabolismo da matéria”, até terminar na formação do pólen. Na polinização ocorre um processo centrifugal. O Rosmarinus (alecrim), por exemplo, contém óleos etéricos, ricos em “phosphorus”. Portanto a flor, que começa com a contração do botão floral, termina com o processo de expansão polinizadora (centrifugal). A raiz tem a característica de se espalhar na terra para buscar água e nutrientes salinos. Esse processo transforma a matéria morta (minerais) em vida. Isso se denomina “processo de vitalização” ou princípio etérico. Portanto na raiz, ela “mergulha” na terra e termina com a concentração das substâncias químicas. Temos, então, nos pólos, um processo se transformando em outro (concentrante em dispersante e vice-versa). Entre essa polaridade, temos o meio, a folha, onde se realiza o ritmo, as trocas gasosas entre oxigênio e gás carbônico. Representa o elemento mercurial, de “um transformar-se no outro”.
A raiz da planta vai ao encontro do seu alimento, num processo de expansão, para enfim realizar a absorção de água, minerais, nutrientes, numa operação de fora para dentro, como se viu. Se observarmos a cabeça humana, constataremos que ela realiza o processo de se dirigir ao mundo, sensorialmente, na visão, na audição, na degustação, etc. Em decorrência disso, temos um processo de acolhimento do mundo sensorial através da cabeça, quando absorvemos a luz, o som, a comida, o cheiro. Por uma questão de simillimum (semelhança) dos processos, a raiz se assemelha à dinâmica da cabeça humana, e é por isso que a atuação terapêutica de certas raízes serve para o tratamento do pólo neuro-sensorial (a cabeça): a raiz da valeriana é sedativa e antiespasmódica; a raiz da arnica, por ser rica em silícia, serve para acidentes vasculares cerebrais (AVC), resolução de hemorragias cerebrais, além de outras indicações; a raiz da mandrágora tem ação narcótica e antinevrálgica, etc. As flores por eliminarem o pólen, o odor, a cor que atrai os insetos, têm a mesma dinâmica da esfera metabólica. Por aí eliminamos: fezes, odor, urina, menstruação, espermatozóides. Por isso a flor de chamomilla é um excelente antiespasmódico para as cólicas infantis, as flores da bursa-pastoris são indicadas para o útero, etc. E as folhas que fazem as trocas gasosas (oxigênio e gás carbônico) têm a ver com o sistema rítmico (pulmão e coração): a folha da salvia ou do eucalyptus para o catarro brônquico, a folha da digitalis para o coração, etc.
Assim os antigos viam a relação profunda entre a planta e o ser humano. Somando-se às modernas pesquisas fitofarmacológicas, pode-se entender “como” e a que “níveis” atuam as substâncias químicas. A presença de nitrogênio dos alcalóides, por exemplo, trás a alma para dentro do corpo, o CPPF (ciclopentanoperidrofenantreno) é a molécula básica do metabolismo e trás a vitalidade (o etérico), etc. Pode-se, assim, elaborar hipóteses médicas, de como uma substância química atua, na interação fisiológica “psico-somática” (alma-corpo).
Uma planta considerada normal, equilibrada entre os três elementos, o floral, o foliar e o radicular, que se pode esquematizar com as proporções: 1:1:1, não é terapêutica. Para se tornar uma planta terapêutica, é preciso estar em desequilíbrio dentro de si, quando se hipertrofia um dos seus elementos. Exemplo: a bryonia possui folhas tão “fracas” que precisam de gavinhas para se “agarrar” na parede, mas em compensação, a sua raiz é enorme e altamente venenosa e é de onde se extrai o remédio; pode-se colocar assim as proporções: 1:1:5. A urtiga apresenta os processos floral e foliar exacerbados, tendo nas suas folhas ácidos, que são utilizados em remédios para estimular o suco estomacal em caso de anemia; pode-se colocar assim as proporções: 1:5:2. A capsella bursa pastoris possui um processo floral intenso e é utilizada para distúrbios ginecológicos; suas proporções: 5:1:2.
Em relação à preparação dos medicamentos vegetais, além dos já conhecidos processos farmacêuticos, como a extração a frio (maceração), indicada em caso de plantas frescas e a cocção, para as raízes secas e cascas, é preciso acrescentar outros métodos de manipulação, que visam o conjunto de forças que atuam na planta, cujo objetivo é atingir determinados sistemas orgânicos do homem. Digestio é indicado para a circulação (Sistema Rítmico: pulmão e coração), infusão para as glândulas em geral, destilação para o processo digestivo. A temperatura mais alta (torrefação, carbonização e incineração) promove um processo “alquímico”: a cinza não constitui apenas a soma de seus sais, mas um conjunto de substâncias que passou por um processo, e isso ocorre em certas funções orgânicas, como na respiração pulmonar. Por meio de uma escolha do processo calórico, permite-se objetivar aonde se deseja induzir uma ação terapêutica, seja: no metabolismo hepático, no renal ou no pulmonar.
Um outro processo desenvolvido por Rudolf Steiner é a dinamização de um mineral através de um vegetal. Este é adubado com um sal metálico e, mais tarde, transformado em adubo orgânico para uma nova semeadura anual. Esse processo se repete normalmente três vezes, portanto três anos, para se preparar esses remédios, que são chamados de “metais vegetabilizados”. Assim o mineral ou metal se aproxima da esfera orgânica, quando se diz que eles são elevados a um grau evolutivo, por se aproximarem da esfera vital (etérica), para uma melhor absorção e atuação terapêutica. Ex.: Cichorium stanno cultum, Taraxacum stanno cultum, Urtica ferro culta, etc.
Apesar de Hahnemann ter descoberto o método da dinamização, nem sempre se utiliza o preconizado por ele nos remédios antroposóficos. Partiu-se de pesquisas, inclusive, para determinar qual o tipo de dinamização seria a mais indicada e se demonstrou que a escala decimal é a mais eficiente e a “mais energética”. Também outros métodos foram desenvolvidos no sentido de demonstrar experimentalmente a atuação da dinamização, desde o método orgânico, até o físico e o clínico. Inclusive, estudos realizados na Inglaterra, randomizados e duplo-cegos, dentro dos mais rigorosos critérios científicos, mostraram que o remédio dinamizado, em comparação ao placebo, é realmente eficaz. Após três trabalhos publicados no The Lancet, sendo o último em dezembro de 1995, ficou já respondido que o “remédio dinamizado” atua! Só é preciso agora ampliar os conceitos e a consciência para se compreender os mecanismos de ação por detrás dessas “doses sutis”.
Para isso se utilizam novos métodos científicos de qualidade, no sentido de tentar “visualizar” a essência da substância: 1º) Dinamólise capilar, foi desenvolvido por Kolisko; 2º) Cristalização do cloreto de cobre, foi desenvolvido por Pfeiffer e 3º) Método da gota, por Schwenk. Na dinamólise capilar, as imagens são formadas pela capilaridade, quando os reagentes e os líquidos a serem examinados ascendem num papel de filtro especial. Esse método permite fazer um estudo mais criterioso da influência cósmica no crescimento das plantas. Por isso as colheitas de plantas medicinais, na medicina antroposófica, são baseadas em novos critérios de pesquisa científica, segundo os quais as influências cósmicas são levadas em conta (com relação ao plantio e à colheita em épocas certas). O objetivo é a potencialização (energização) do medicamento. Esse mesmo método foi ampliado pelo Dr. Werner Kaelin, na pesquisa de “tendência à pré-cancerose” (KAELIN, W. Der Kapillar-dynamische Bluttest zur Frühdiagnose der Krebskrankheit. Philosophisch-Anthroposophischer : Schweiz. 1965). Tem sido usado por nós, em nossa Clínica, no sentido de captar alterações sangüíneas qualitativas, o que pelos exames laboratoriais convencionais não se consegue. As imagens fornecem uma visão de harmonia ou desarmonia do conjunto orgânico, do estado de vitalidade, das disfunções orgânicas e das tendências precoces de doenças. Os sinais apontam para “tendências” esclerosantes, inflamatórias ou cancerosas.
Com uma metodologia científica totalmente independente da visão acadêmica, como se está vendo, alguns remédios antroposóficos não podem ser comprovados pela pesquisa científica alopática. O cardiodoron, remédio básico do coração, a ação farmacológica, no experimento em gatos, mostrou atuação muito fugaz. Esse remédio é composto de 3 plantas medicinais: Onopordon, Hyoscyamus e Primula. A primeira planta contém cardioglicosídeo (tônico cardíaco), mas de atuação bem suave. Tem mais uma atuação revitalizadora (etérica) sobre o coração, do que cardiotônica. A segunda contêm alcalóides (presença de nitrogênio na fórmula, o que aponta para um suporte da “alma” no coração, como se falou) e a terceira contêm saponinas, que formam bolhas, conseguindo assim segurar “ar” dentro da substância. Ou seja, tem a ver com o processo de oxigenação das fibras cardíacas (as trocas são realizadas na diástole, por oxidação aeróbica) e age também na circulação periférica. Portanto, o cardiodoron é o remédio arquetípico do coração. Ele alimenta o coração (no físico, no etérico e na alma).
Nesse sentido, é preciso abrir novos paradigmas neste novo século que se inicia. Assim como se precisa da “prática médica alopática” em casos de emergência, também se precisa da medicina antroposófica para ampliar e fornecer o alicerce firme para a compreensão do ser humano como um todo. Os argumentos científicos da medicina antroposófica são dedutivos, goetheanísticos e steinerianos. Para aqueles radicais, que só vêem um caminho unilateral nas condutas médicas, utilizar-se-á as palavras de Goethe: “Para aquele que não quer colocar na cabeça que espírito e matéria, alma e corpo, pensamento e percepção, vontade e movimento, foram, são e serão os duplos ingredientes do Universo, cada qual reclamando direitos iguais ao outro; e que esses pares devem ser considerados, sem dúvida, como representantes de Deus; aquele que não pode se elevar a essa idéia, deveria, há muito tempo, ter renunciado ao pensar”.
Dr. Antonio Marques