PLATÃO = Deus falando às Hierarquias: “Deuses, filhos dos deuses de quem sou o Autor e das obras de que sou Pai, nascestes por mim, e sois indissolúveis, tanto que eu não desejaria dissolver-vos. Pois, se todo composto é corruptível, querer romper a unidade do que é harmonicamente unido e belo é perversão. Portanto, e porque nascestes, não sois imortais, nem de todo incorruptíveis. Nunca sereis dissolvidos nem sofrereis fado mortal, pois meu querer é para vós liame mais forte e possante do que aqueles com que fostes ligados ao nascer. Agora, escutai o que minhas palavras ensinar-vos-ão. Restam três espécies mortais que ainda não nasceram. Se não o fizerem, o Céu permanecerá inacabado, pois não incluirá absolutamente todas as espécies de viventes. E é necessário que as inclua, se deve ser absolutamente perfeito. Mas, se eu mesmo as gerasse, se participassem da Vida por mim, seriam iguais aos deuses. A fim de que, de uma parte, esses seres sejam mortais, e que de outra parte o Todo seja verdadeiramente o Todo, aplicai-vos, conforme vossa natureza, a fabricar seres vivos. Imitai a ação de meu poder, quando de vosso nascimento e, quanto à parte desses seres que deve levar o mesmo nome que os imortais, a parte chamada divina e que dentre eles prevalece, naqueles que desejarão sempre seguir-vos, e à justiça, eu mesmo prepararei e vos darei a semente e o princípio. No mais, adicionando a esta parte imortal uma parte mortal, fabricai viventes, fazei-os nascer, dai-lhes o sustento, fazei-os crescer e, quando perecerem, recebei-os de novo junto a vós”.(Timeu 41).
PLATÃO, Timeu, São Paulo : Hemus, [s.d.], p.100
Para muitas pessoas, este artigo pode não ter significado nenhum, pois aceitam placidamente sem questionar o que a ciência experimental (empírica) dita como “normas e dogmas”. Nesse sentido “a saúde é um conjunto de bem estar físico, social e econômico”. Essa é, no entanto, uma visão muito simplória e ingênua, porque não atinge a “essência do ser humano”. Pretende-se, neste artigo, suscitar “questionamentos” sobre “a saúde e a doença”, a partir dos pontos de vista das sabedorias de Zaratustra (Gâthâs), de Platão (Timeu) e de Aristóteles (Metafísica).
É preciso começar com a pergunta: Qual é a origem do ser humano? A resposta, no entanto, não se encontra nele, uma criatura acabada, mas em “quem” o criou. Por isso “descobrir o autor e o pai deste universo é um grande feito” (Timeu 28) e desejo de todo cientista. Nesse sentido é preciso começar por entender a natureza do “Criador”. No entanto, segundo Platão, não é o Demiurgo (Deus) quem cria o mundo (Deus não é “construtor” de mundos), mas são os Daímones (Seres Espirituais) que constróem o cosmo, utilizando a “sabedoria” demiúrgica (divina): “Todas as coisas que primordialmente foram geradas receberam suas figuras do Demiurgo ordenador pela ação das ‘Idéias’ (eidesí) e números (arithmoís)” (Timeu 53). Aristóteles, com sua lógica pensamental, chega às mesmas conclusões: Deus não é construtor de mundos ou do Universo. Aliás Ele nem conhece o mundo, pois conhecer algo fora de si implicaria na atualização de uma potência e o seu pensamento não se macula com coisas inferiores. Se criasse o mundo, Deus seria um ser carente, que estaria criando algo para a sua necessidade; sendo perfeito, não iria criar algo imperfeito como a matéria, porque “uma causa é semelhante ao seu efeito”. Portanto Deus não é a causa material do mundo, mas a “causa final”, transcendente. Isso significa que todas as “criaturas” buscam a uma “finalidade” (a um objetivo, a causa final) na evolução; ou seja, buscam a Deus. É um caminho inatingível e eterno. Por isso “Deus é pura forma, ato puro, incorpóreo, puramente espiritual, puro pensamento”. Mas um pensamento pleno de si mesmo, com a mais perfeita “consciência de sua consciência”. Pois o pensamento de Deus não pode pensar em outra coisa, senão “naquilo que há de mais divino e de mais excelente”, que é Ele próprio. Também não pode mudar de pensamento, pois uma mudança seria entender que um pensamento poderia ser mais perfeito do que o outro, e isso é inconcebível na mente Divina, absoluta e perfeita. Portanto, “o mudar seria passar do melhor ao pior”. Então, o que pensa Deus? “É um pensamento que se pensa em si mesmo”. Assim, Deus existe acima do mundo, isto é, transcende ao mundo. Mas ao mesmo tempo que está no céu exterior, segurando o Universo todo, como o deus Atlas (grego) segurando o globo nas costas, Ele se derrama nas suas criaturas, pois “Ele é ora uma coisa, ora uma pluralidade”, como afirma Aristóteles.
Portanto o ser humano foi criado pelos seres espirituais e por isso o caráter policromático da sua alma, pois todos os seres espirituais contribuíram na “fabricação” do ser humano. De Deus se tem o Bem, pois este está presente no mundo como cópia modelar e não comporta o Mal dentro de si. Pergunta-se: Quando então, surgiu o Mal na história humana? Para Platão, “tou kósmou génesis ech anánkês te kai nou sustáseôs egennéthê” (Timeu 48). O nascimento do cosmo teve lugar por uma mistura de duas ordens: da sabedoria e da necessidade. Todavia, a “sabedoria” dominou a necessidade. A “sabedoria cósmica” é o Bem, o Verbo, o Lógos, a formadora de tudo. O mal tem a ver com a “necessidade” (anánkê) e está relacionado com a materialidade (e não com a origem), pois não forma modelo, mas “subjugo”. Por isso não se pode denominar o mal de “pecado original”, porque nasceu depois. É mais correto denominar “pecado histórico”. Por não sobreviver no mundo celeste superior (no céu), por causa de sua composição alógica e amétrica (álogos e ametrós), ele reina somente aqui embaixo, na “região sublunar” (na Terra), sentencia Platão.
Com a “polaridade” surgida no mundo espiritual, entre o Bem e o Mal, chegou-se a um ponto crucial no Universo. Havia a necessidade da criação humana. E, num ato de Pai Celeste que olha todos os seus filhos, Ele (ou seja, as Hierarquias) cria um mundo intermediário, um terceiro elemento (a Terra), um meio-de-campo, onde todos participam da criação, cada um a seu modo. Por isso somos tão complexos, pois somos filhos da complexidade que existe no mundo espiritual. Assim falava Zaratustra, o profeta persa, que queria fazer dos seres humanos adultos espirituais, cinco séculos antes de Cristo: “Deus criou os seres livres. Mas um queria colocar o seu trono acima das nuvens. Como o Pai não destrói um filho seu, por pior que seja, o prende no “espaço-tempo” (aqui na Terra). E deixou cair uma lágrima do Bem no meio do mal. Assim foi formado o ser humano, da mistura do bem e do mal”.
Para os homens da Antigüidade, o homem é imortal: ora se liga à matéria, para dar vida física à existência; ora ascende ao mundo espiritual (ou Hades). Esse processo de reencarnação era visto como um meio de desenvolvimento “ético-espiritual” de purificação (kátharsis) e de necessidade (ananké). Com relação ao aspecto “necessidade”, tem a ver com o “karma” (palavra indu). O carma, pela visão oriental, é a “necessidade” que se impõe ao indivíduo como uma “lei do retorno”, isto é: ao praticar um ato, seja bom ou mal, a pessoa recebe o que “semeou”. Pode-se dizer que a “semeadura é livre”, mas a “colheita obrigatória”. Se se semeia abrolhos, colhe-se abrolhos e não abrótano. Se se pratica o bem, recebe-se o bem. Se se pratica o mal, recebe-se o mal. É a lei do retorno. Por isso se diz: carma bom ou carma ruim. No entanto isso não pode ser entendido como uma lei mecânica tipo ação-reação, mas deve estar dentro de um ponto de vista espiritual superior. Assim “o destino” depende da responsabilidade individual associada com a predeterminação. “A responsabilidade é de quem escolhe. O deus não é culpado”, já dizia o hierofante.
Os conteúdos platônicos são profundos e se precisará utilizar uma comparação para entender o que se comentará a seguir: Os seres humanos caminham da vida para a morte, enquanto que os seres divinos caminham da morte para a vida. Ou seja, estes deixam para trás a materialidade, para conseguir mais vida. (Esse processo de “conseguir mais vida” é realizado também no corpo humano: nos rins. Estes filtram o “sangue sujo” para formar a urina, a qual corresponde a um produto “material” que deve ser eliminado, por não pertencer mais à vida. Assim o “sangue filtrado” torna-se mais limpo, mais vital, “mais vivo”). Nesse caso, o Céu (cosmo-espiritual) e as hierarquias superiores, enquanto “viventes perfeitos” (málista zôon), são isentos de velhice ou de males, plenos de alma e habitados pelo Nous (pelo espírito). Ou seja, são compostos de corpo, alma e espírito. (Somente Deus é espírito puro, como se comentou). Justamente na “materialidade” deixada pelos seres divinos, o homem consegue viver e conquistar a sua liberdade. Isso não deixa de ser um “monismo” impressionante, uma “simbiose” entre a divindade e os seres humanos. Dos elementos minerais (mortos) da natureza consegue-se ser livre! Por isso o cérebro humano é quase sem vida, quase mineral (basta ver o líquor cerebral rico em sais minerais).
“Deus formou a alma antes do corpo: mais antiga pela idade e pela virtude, para comandar e o corpo para obedecer” (Timeu 35). Ao ser implantada a alma no corpo, ela não tem domínio sobre a Necessidade (o carma), apenas tenta impor seu próprio movimento, segundo Platão. E quais são esses “movimentos”? Correspondem às três qualidades anímicas (ou psíquicas): pensar, sentir e querer. Ou seja: consciente (Ego), subconsciente (animus/anima) e inconsciente (id), respectivamente. E como foi justamente na alma que entrou o mal, numa certa época histórica, essa circunstância leva o homem a adoecer e a morrer. Por isso é imprescindível conhecer melhor as “qualidades” do mal.
Vamos buscar em Zaratustra as respostas a essas questões cruciais do homem moderno. “Assim falava a divindade” para ele: “A mim os bons pensamentos (humata), as boas palavras (hukhata) e as boas ações (huvarshta). Eu tenho por vestimenta o céu, que foi o primeiro a ser criado deste mundo material (…). Os bons pensamentos, as boas palavras e as boas ações são meu alimento” (Gâthâs Dr.IX,30.7). Através do cultivo do individualismo ético (aquisição de virtudes), consegue-se desenvolver “os bons pensamentos”. Com essa qualidade espiritual, pode-se atuar com moralidade no mundo (através da política e da economia). Ou seja, o homem precisa desenvolver as virtudes interiores, para se colocar no mundo através da “palavra” (viver em sociedade) e do “atuar” (trabalhar e produzir para os outros). Isso é compreensível, no entendimento do que seja ética (interior) e moral (exterior). Mas se depara com uma questão embaraçosa no texto acima: Como podem o pensar, o falar e o atuar ser “alimentos” para a divindade (ou para as hierarquias)? Isso se processa durante o sono, período no qual o corpo físico e o corpo etérico (vitalidade) ficam na cama, enquanto a alma e o espírito saem do corpo e são acolhidos pelas hierarquias espirituais. Nesse sentido, pode-se entender essas antigas sabedorias: pelos bons pensamentos, boas palavras e boas ações “alimentam-se” os seres espirituais e se recebe deles a “saúde” que, por sua vez irá alimentar o corpo físico, ao despertar. Tece-se uma ligação sutil, entre o ser humano e a divindade, um “carma bom”, saudável. Desse relacionamento dependerá também o post-mortem de cada um. Como se pode entender melhor esse aspecto?
O que acontece se o indivíduo não cultiva a ética, ou seja, os bons pensamentos? Ele terá a maldade nas palavras e nas ações (no “sentir” e no “querer”, respectivamente). Dessa maneira, ele não é acolhido pelas hierarquias espirituais durante o sono. Pela “lei da afinidade”, ele se torna presa fácil das forças do mal. Gera-se assim um carma ruim (ou doença para o corpo). Quando chegar a hora de atravessar o portal da morte, também não será acolhido pelos seres divinos… (Será acolhido pelo mal). Resta o consolo de que num futuro retorno terá uma nova “chance” de reparar a doença da alma.
Por isso é preciso um esforço permanente de superar o mal (a doença) dentro da alma, através da ética espiritual: “O único culto que agrada a Deus consiste em sacrificar os maus pensamentos, palavras e ações no altar da consciência”, já dizia Zaratustra. O que importa realmente não é a máscara que se usa na sociedade, mas o que se é e o que se faz. Desenvolvendo-se o individualismo ético, é possível torna-se moralmente produtivo. Dessa maneira, o ser humano pode levar, durante o sono, as “forças” presentes nas suas “palavras” e nas suas “atuações” às hierarquias. Tece-se assim o carma nesta existência, ou seja, a saúde (ou a doença). Por isso o Pai celestial sentenciou às hierarquias, como se viu no começo deste artigo: “…fazei-os nascer, dai-lhes o sustento, fazei-os crescer e, quando perecerem, recebei-os de novo junto a vós” (Timeu 41), para novo recomeço.
Dr. Antonio Marques