Época de São João, preparatório para o Espírito Santo
“ Eu sou a voz que clama no deserto: endireitai o caminho do Senhor “ (Jo 1 , 23)
Dentre as épocas festivas religiosas do ano, São João é a que tem mais significado para o ser humano. As outras ele acompanha de fora as manifestações das Hierarquias (Natal, Páscoa e Micael). Em São João vivenciam-se as transformações evolutivas pela água e pelo fogo. Entre as duas surge o 3º elemento, o meio, para perfazer a trindade. Desse modo se pode compreender as sentenças de Lucas (3,16) e de Mateus (3,11): “ Eu, na verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que é mais poderoso do que eu, a quem não sou digno de desatar a correia das sandálias; este vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” . Ambos fazem referência a 3 tipos de batismo: em água , para arrependimento do passado e com o Espírito Santo e com o fogo , um revestimento de poder para os salvos em Cristo (cf. Lc 24,49; At 1,5-8; 2,1-4). Será necessário abrir um parênteses para entender esses três processos arquetípicos de iniciação humana: pela água, pelo fogo e pelo Espírito Santo.
Em tempos imemoriais sabia-se que o homem possuía corpo físico, helikia, psyk e e Noûs (termos gregos); ou: corpo físico, etérico, alma e espírito . A iniciação espiritual antiga, até o Egito antigo, período que corresponde à 3ª época cultural pós-atlântida (a 1ª foi a Índia e a 2ª foi a Pérsia), visava “casar” o espírito (o Eu, a individualidade) com os elementos superiores do homem ( alma e etérico ), os quais representavam o “lado feminino”. A matéria (o físico, o lado masculino, o pai) era apenas um “amontoado mal cheiroso de músculos e ossos”, que se devia desprezar, por representar “maya” (palavra indu), a ilusão terrena. Intentava-se “casar com a mãe”, o elemento feminino e desprezar (ou matar) o “pai”, a matéria. Era uma iniciação espiritual drástica, em que muitos morriam, por não conseguir retornar à matéria após os 3 dias de experiência no mundo dos espíritos. Lázaro foi o último a realizar esse processo, após a “pseudo-morte” de 3 dias: “ As irmãs mandaram dizer a Jesus: Senhor, aquele a quem amas está doente. A estas palavras disse Jesus: Esta doença não causará a morte mas se destina à glória de Deus. Lázaro, nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo ” (João, 11,3-11). Também João Batista realizava algo parecido de iniciação, através do qual o neófito era mergulhado na água e num processo de quase morte vivenciava o que tinha que fazer, na superação do pecado anímico. Era uma maneira de a alma e o Eu saírem um pouco do corpo, no sentido de visualizar as transformações que deveriam ser realizadas.
Iniciação antiga (batismo pela água)
“casamento” entre o Espírito + Alma/Etérico (a mãe)
E mata o Físico (o pai)
Apesar de ser uma iniciação antiga, o Cristo (o Eu sou ) “nasceu” para o mundo através desse processo: “ Ao ser batizado todo o povo e quando Jesus, depois de batizado, rezava, abriu-se o céu e desceu sobre ele o Espírito Santo em forma corpórea, com uma pomba, ouvindo-se do céu uma voz: Tu és meu Filho amado ” (Lucas 3,21). A partir daí é conhecido como Jesus-Cristo ; e Ele também realizou esse antigo processo, mas um pouco diferente, unindo-se ao elemento feminino da sua mãe, para realizar um milagre: a transformação da água em vinho. “ No terceiro dia houve umas bodas em Caná da Galiléia (…) Tendo acabado o vinho, disse sua mãe: Eles não têm vinho ”. Respondeu-lhe: “ Mulher, flua de mim a ti . Ainda não chegou a minha hora ”. Havia ali seis talhas de pedra… “ Enchei de água as talhas (…) e logo o mestre-sala provou da água convertida em vinho ” (João, 2,1-9). [A sentença sublinhada está baseada no original grego, pois na tradução para o latim, houve um erro crasso: “mulher, o que há entre mim e ti?”] Assim se pode apreender o significado do Eu divino se unir ao elemento “feminino” da sua mãe, para realizar esse “milagre” na matéria (da água).
Só que, durante o período grego, esse tipo de desenvolvimento espiritual drástico estava em decadência e deveria ser suprimida sua forma de realização. Caso alguém se enveredasse nesse caminho, cairia em desgraça, a qual se estenderia a todos os seus e à sua comunidade. Isso pode ser melhor compreendido na portentosa imagem do Édipo-Rei . Cada um de nós carrega um Édipo dentro de si: todos intentamos, mesmo atualmente, “casar” com o nosso lado feminino: prazer, luxúria, egoísmo, etc., posturas que podem chegar às raias dos vícios pecaminosos, da religiosidade fanática, das drogas entorpecentes, etc. Na época atual não se pode “casar com a mãe”, com os elementos superiores (com a alma e o etérico) e desprezar a matéria (o pai). O que pode acontecer? Voltando à lenda, desse “casamento anômalo”, geram-se 4 filhos: dois com características etéricas (as filhas) e dois com características anímicas (os filhos). As filhas dão todo apoio ao pai ( Édipo ) e lhes são permanentemente fiéis (o etérico, a vitalidade, acompanha sempre o espírito). Os filhos, representantes da alma, a qual é polarizada, entre animus e anima, entre positivo e negativo, entre o bem e o mal, empreendem uma luta cruenta, que acaba em destruição para os dois lados da alma. Etéocles personifica o lado negro da alma e Polinices , o lado bom, mas sem forças para enfrentar sozinho o lado mau; ao se associar ao inimigo, põe a perder toda a comunidade (o corpo todo), pois acaba lutando com o seu irmão e ambos morrem em batalha. Assim a alma se auto-destrói.
Como Platão fala, existem duas forças na alma, como dois cavalos, um branco e outro preto, como polaridades, os quais precisam da maestria do cocheiro para domar a parelha. Como neste caso, o domínio do Eu ( Édipo ) não existe mais, os cavalos começam a se estranhar e partem para a briga. Caso não haja domínio do espírito sobre a alma, esta começa a manifestar a sua própria característica, que tem a ver com o “desejo”; e um desejo desenfreado, todos sabem no que pode dar. E o que move a alma é justamente o “desejo”, o qual é uma forma de se estar presente no mundo, no palco das nossas vidas. Mas precisa-se de um domínio, que deve vir de cima para baixo. Por isso Platão e Aristóteles sentenciam: “ o espírito é exterior e enraizado na alma ” (o espírito vem de fora, de cima e se imiscui na alma). Com a destruição da alma, com a morte dos dois filhos, assume o trono Creonte , uma força estranha, maligna, isenta de sentimentos humanos, que coloca tudo a perder; representa a força maléfica, demoníaca, mefistofélica, que vem de fora, assume o controle do ser moribundo e acaba por destruir tudo.
Portanto, essa é a infeliz iniciação espiritual, a qual não se deve almejar. Representa o caminho antigo, que deve ser “cortado”, podado. Inclusive o Cristo, ao “cortar a figueira”, quis mostrar que, ao se praticar essa antiga forma de meditação: ficar sentado de pernas cruzadas, imóvel debaixo da árvore, insensível ao mundo, somente voltado para o fenômeno espiritual, não deve mais existir. Ou seja, o batismo pela água representa antiga forma de iniciação, que deveria ser superado. Atualmente se deve almejar o batismo pelo fogo. Como se pode visualizá-lo? A época de São João no hemisfério sul é marcada pela neblina gélida que cobre a natureza e por causa disso se recorre ao agasalho e acende-se a “fogueira” para se aquecer. Essa polaridade entre o frio externo e o calor interno, mostram duas forças polares atuando no ser humano. Rudolf Steiner diz que nessa época, neste hemisfério, atua de fora a força do Arcanjo Gabriel, com seu olhar manso, acalentador, como um manto protetor – seria reflexo do antigo batismo pela “água”; e a partir de dentro atua a força do Arcanjo Uriel, com seu olhar severo, admoestador, a nos exigir mudança de postura, de renovação dos nossos velhos hábitos pecaminosos – representa o batismo pelo “fogo”. Como este se manifesta?
Nas culturas campesinas e interioranas vivenciam-se essa polaridade, no cultivo da “fogueira” durante o mês frio de julho, dedicado à São João. São as mesmas representações realizadas n o antigo festival da colheita do trigo e da cevada, para fazer o pão. Os cereais eram colhidos e iam ao fogo. Na Antigüidade, o pão não era utilizado apenas para alimentar, tinha também conotação religiosa. Durante a semana, utilizava-se o pão azedado ( sovado ) e, aos domingos, consagrados ao Senhor, o pão ázimo (não azedado, não fermentado). Esse pão é redondo e achatado (não cresce como o pão comum fermentado): ” Nenhuma oferta de cereais, que oferecerdes a Jeová, será preparada com fermento ” (Levítico 2,11). Os cereais foram desenvolvidos na época da antiga Pérsia (±5.000 a.C.) a partir das gramíneas. O grande mestre Zaratustra rasgava a terra com o ancinho dourado para que a luz do sol fecundasse as “primevas sementes transgênicas” lançadas ao solo. Os altos teores de silícia presentes nos cereais apontam para sua relação com a luz. Por isso é preciso muita luz solar para que eles cresçam. A silícia funciona como antena que capta as forças cósmicas e, no corpo humano, ela vai atuar até no tecido conjuntivo e na configuração de todo o organismo, como processo de trazer o “fogo” (combustão) para dentro do corpo físico. Nesse sentido, os cereais são os alimentos solares por excelência e deveriam ser o alimento do homem moderno (não o pão fermentado da padaria, mas o “pão sovado” sem fermento).
Esse processo de fazer o pão era revestido de um ritual, realizado durante a Pentekoste (termo grego), que significa “quinquagésimo dia” após o domingo da Páscoa e corresponde na Cristandade, à descida do Espírito Santo sobre os apóstolos do Cristo. Estes, a partir daí começam a pregar a boa nova. Que mistério se encontra nessas imagens? Além dos batismos pela água e pelo fogo, manifesta-se a força do Espírito Santo; por isso, no dia de Pentecostes, “ foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles ” (At 2,3). É a mesma imagem da planta, que da semente no chão recebe os nutrientes da natureza, para nascer, crescer e por fim florescer. Primeiro precisa do ambiente que a nutre, depois crescem galhos e folhas, para finalmente “receber do alto” a flor. A característica da planta é a clorofila, de cor verde; mas a flor carrega outra substância, o alcalóide, de característica animal; por isso o caráter multicolorido das flores e onde se realiza a fecundação (sexualidade). É a alma do Cosmo que toca a planta, a partir de cima, após ela estar madura e pronta para receber o coroamento da sua vida – sua flor. Para a planta, tipicamente etérica, ela se esforça para ser agraciada pela Alma Cósmica; para o ser humano que tem um Eu, se esforça para ser abençoado pelo Cristo.
Pode-se dizer que, no passado remoto, vivia-se em um lado da moeda: o lado espiritual. Hoje vive-se o outro lado da moeda: o materialismo visceral. Não deixa de ter razão quem afirme que, por questão evolutiva, o homem moderno precisa “casar com seu pai”, com a realidade do mundo. Em Goethe, dentro de sua monumental obra literária e científica, pode-se descortinar uma porta para entender o que significa o “viver realístico”. Eis o que diz ele: “ Confesso que, a grande meta, que parece tão importante, expressa na máxima “Conheça-te a ti mesmo”, me há suscitado sempre suspeitas, como se fosse uma astúcia de sacerdotes secretamente confabulados que quiseram confundir o homem com exigências inalcançáveis e desviá-lo da atividade do mundo externo para uma falsa contemplação interior. O homem se conhece a si mesmo na medida em que conhece o mundo ”. Assim Goethe projeta o homem para o fenômeno exterior, para o mundo sensorial, para a experiência. Ou seja, a essentia é que se projeta no fenômeno, na natureza, no mundo físico.
Iniciação moderna (batismo pelo fogo)
“casamento” entre Espírito + Alma + Etérico + Físico
Somente nesse caminho descendente para a materialidade pode-se compreender a sentença joanina: “ No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (…) e o Verbo se fez carne ” (João 1,1). Cabe ao homem fazer o esforço de gerar em si o batismo pelo fogo, centrado no seu coração, para nascer o “amor”, pois somente assim pode-se candidatar para receber a mais alta benção, ser coroado pelo Espírito Santo….. No entanto, o grande perigo que ronda essa evolução vem da Religião e da Ciência, pois elas não dão salvaguardas aos “anseios íntimos da alma” (não explicam esses mistérios) e por causa disso o ser humano se vê obrigado a voltar ao passado, mas só encontra o “bezerro de ouro”, como o novo deus mecânico que se estampa na mídia, na vida profissional, nos relacionamentos, etc. Por isso recorre aos subterfúgios das drogas químicas (entorpecentes, ansiolíticos, álcool, cocaína, etc.), das drogas sociais (apatia, imoralidade, criminalidade, corrupção, terrorismo, etc.), das drogas da alma (egoísmo, prepotência, sexualidade doentia, etc.).
Portanto, é preciso despertar para a iniciação atual: deve-se “casar com o pai”, com a realidade, com a materialidade, mas tendo o espírito (o Eu), como centro, como um bastão vertical, em torno do qual gravita a alma, como uma “cobra enroscada”. Esse símbolo mosaico ou crístico é também o “símbolo da medicina”. Nele se deve inspirar e procurar aprumar o mais verticalmente possível o “seu bastão” (seu Eu), para galvanizar a alma em torno de si, para se candidatar ao acme dos batismos: ser abençoado pelo Espírito Santo. Só que esse coroamento se dará após um “período de tempo” ( Pentekost e ), ou seja, somente após se “estar pronto”, se estar maduro; e isso para a grande maioria da Humanidade ocorrerá na Nova Jerusalém (Apocalipse) ou no Novo Júpiter (Antroposofia) e em fases futuras da evolução planetária humana.
Batismo pelo Espírito Santo
A ser realizado na Nova Jerusalém ( Novo Júpiter ) e em fases futuras
Por isso nesta época joanina deve ser marcado pelo impulso de Uriel, com seu olhar admoestador, severo, que deve gerar em nós o despertar do fogo crístico em nossos corações, para que realizemos o batismo pelo fogo, no casamento com o pai, com a materialidade, no sentido de nos candidatarmos ao batismo pelo Espírito Santo, que virá do futuro, como “Cristo em nós”.
Dr. Antonio Marques