Pensar com o coração

Para o antigo egípcio, o homem pensa com o coração . Parece uma incongruência, desenvolver recursos técnicos altamente evoluídos para a época e dizer um disparate desse: como é possível o homem pensar com o “coração”? Teremos dois modos de pensar? Um com a cabeça e outro com o coração? Para abordar este tema, precisa-se entender, em primeiro lugar, como o homem desenvolveu historicamente seu pensamento, para que, em segundo lugar, se possa adentrar nos meandros do pensar, propriamente dito. O primeiro lampejo pensamental se manifestou nos oráculos, por meio da casta sacerdotal: Vedas , Livro dos Mortos , Tao-te-king e Antigo Testamento , em que sujeito e objeto comungavam uma potência comum. Com o crescimento da pólis , essa linguagem foi sendo absorvida pelos professores de oratória, os sofistas, para, no fim da República Romana (séc. I aC), ser suprimida sua razão de ser. Permaneceu, no entanto, como manifestação “poética”, nos contos, mitos, lendas, sagas e epopéias. Pode-se nomear esse período de discurso sagrado-retórico . Como segunda manifestação pensamental, entra em cena o pensar filosófico (principalmente Platão e Aristóteles – séc. V aC), como instância suprema para a arbitragem das questões metafísicas, científicas, éticas e políticas, cujo ápice é alcançado na Escolástica, no séc. XIII, com Tomás de Aquino e Albertus Magno. Denomina-se discurso dialético-dedutivo . Com o Renascimento (séc. XV), Descartes, Bacon e Kant inauguram novo paradigma pensamental, em que o pensamento se afunila para se restringir apenas ao que se pode “ver e pegar”, na constatação do evidente. Sob o primado da ciência materialista, chega-se ao fundo do poço do tecnicismo, com a lógica matemática e o sucesso dos modelos informático-computadorizados. Esse paradigma nomeia-se discurso analítico-indutivo .

Esse longo caminho evolutivo serviu para o ser humano conquistar o “ pensar cerebral ” e com ele a liberdade, a cidadania e a atuação no mundo. No entanto, com esse pensamento que nasce do cérebro, fica-se preso a um número limitado de caracteres e símbolos (depositados na memória), que se utiliza para elaborar pensamentos, com o intuito de transmitir, por meio da linguagem, uma imagem, para que o outro o entenda. Atualmente, o homem não se interessa mais pelo pensar cerebral – só a experiência ( empirismo ) dita tudo. O papel científico humano (o pensar) se restringe apenas a reverenciar o que se constata nos testes laboratoriais (duplo-cegos, randomizados, estatísticos e correlativos). O que é transcrito nos livros torna-se “lei”, a qual não se pode questionar. A recomendação básica da Ciência é: concentrar-se apenas no que o sensório capta pelos sentidos e desprezar o trabalho intelectivo. Assim Bacon sentencia que se torna lei até os dias de hoje: “ Nosso método consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente ”. E o pior de tudo é que “ o homem é um animal que, a partir do momento em que vive entre outros indivíduos de sua espécie, necessita de um amo ” (Kant). Nesse sentido fica-se também “ preso ” aos “dogmas, normas, condutas, códigos, livros, autoridade”. Quem é o amo? O grande capital, a economia, a ciência, a mídia. Não se precisa mais raciocinar, intelectualizar , pois o “amo” provê tudo.

São frustrantes essas constatações. No fundo mostram que a “curva evolutiva é descendente”, para dentro da matéria. Atingimos o fundo do poço do materialismo. Caso se questionasse como o ser humano pensa, baseado no conhecimento científico que se tem hoje, se concluiria que ele teria apenas “percepções”, como um cão; e, talvez por dentro, até “pensasse” alguma coisa, como um computador; mas não poderia pensar sobre o que sente de fato, isto é, raciocinar sobre a experiência vivida, nem poderia, de outro lado, orientar a experiência pelo raciocínio, buscando novos conhecimentos. Seria tão eficiente quanto um computador operado por um cão, e tão vivo quanto um cão configurado na tela do computador.

O todo poderoso “pensar cerebral” ( Ego ) se restringiu apenas ao observar passivamente o fenômeno. Mas isso tem um aspecto verdadeiro, pois afinal o cérebro sempre teve essa função – de percepção sensorial do que acontece no mundo. Isso também os animais têm, mas o que se distingue do ser humano, é que este possui “ intelectualização ”, “ compreensão ” e “ memória ”. Se não estão no cérebro (já que o cérebro serve apenas como órgão sensorial), onde se encontram? Segundo Rudolf Steiner, até o período grego, o homem pensava com a alma , centrada no “sistema rítmico” (coração e pulmão). Com o passar de gerações e gerações, o pensar anímico foi sendo transladado para o cérebro, foi se impregnando na materialidade cerebral. Tornou-se pensar intelectual (o Ego ). Por isso é certo afirmar hoje em dia: “O pensamento é resultado de uma rede de linhas excitatórias e inibitórias de projeção ( feedforward ) e de retroação ( feedback )”, como afirma a Ciência. É preciso esclarecer que temos o “pensar anímico”, que foi se impregnando no cérebro, para se tornar intelecto e temos o “pensar espiritual”, que continua na esfera cardíaca, que gera a “compreensão do fenômeno” (idear ou ter a idéia do fenômeno).

Graças aos ensaios científicos de Goethe (1749-1832), reconquista-se a tríade: observar , intelectualizar e idear . Goethe é o marco, o ponto de virada, na evolução do pensamento, pois com ele se dá a guinada esperada para se começar a “curva ascendente”, conforme mostra o esquema. Deve-se partir da “ observação ” (sensorialidade) do fenômeno, para trabalhar “ intelectualmente ” com os conteúdos científicos absorvidos, cuja finalidade é acessar o patamar mais elevado, que é a “ idéia ” do fenômeno (tese ou conceito). Isso se denomina discurso goetheanístico .

Após a imagem passar pelos olhos e se dirigir pelo nervo ótico, para trás do cérebro, transforma-se em “vibrações imagéticas” (de imagens). Estas descem à esfera do sistema rítmico (coração e pulmão) via líquor cérebro-raquidiano, com o objetivo de serem intelectualizadas, arrazoadas e compreendidas. Em seguida mergulham profundamente no sistema metabólico (abaixo do diafragma), para serem armazenadas como “memória”. Portanto, ocorrem três passos processuais do que entra como “visão”. A cabeça funciona apenas como “órgão de percepção” (e secundariamente como órgão do intelecto, devido a nossa evolução), como se afirmou; o sistema rítmico, como “órgão de compreensão” e o sistema metabólico, como “órgão da memória”. Pode-se entender agora como o velho tem recordações do passado bem remoto, justamente porque a parte da alma que se localiza na esfera metabólica começa a se soltar (pois um dia irá retornar ao mundo espiritual) e as imagens do passado começam a brotar na mente.

Relacionar o pensar com o coração pode parecer bem estranho, mas constata-se que raiva e vergonha, provocam rubor, pois impulsionam o sangue para a periferia do corpo; angústia e medo empalidecem a pessoa, pois o sangue se retrai para o interior. Quando se tem intenção de levantar o braço, o sangue flui aos músculos, antes que ele seja executado. Os “sentimentos da alma” são, portanto, a força motora do sangue. A alma impulsiona o sangue e o coração se movimenta porque é impulsionado pelo sangue. É isso mesmo, pois o sangue primariamente impulsiona o coração e se movimenta espontaneamente nos capilares (pequenos vasos). Apesar da embriologia mostrar que “ primeiro nasce o sangue e começa a circular espontaneamente nos capilares; – só depois nasce o coração ”, a visão científica atual diz que a função principal do coração é “bombear” o sangue. No entanto essa afirmativa é falsa, pois somente 1% corresponde a essa função. Os 99% da função cardíaca são para gerar “tensão” ou pressão arterial (PA). Essa tremenda “tensão muscular” (PA) faz-se necessária apenas para albergar a alma no corpo. Pode-se dizer que se precisa viver permanentemente no “stress” para se ter vida pensamental, sentimental e atuação corporal. Como se está vendo, no coração impera um sistema “anti-fisiológico” (e não-econômico) e isso ocorre porque vigem por trás a alma e o espírito . Só que a alma imprime a contração muscular – a sístole , a qual exige uma dose de “estresse” (o espírito imprime outra qualidade, como se verá abaixo). Dessa maneira fica-se beirando ao enfarte , pelo excesso de viver no pensar cerebral (na alma, no ego ). O mesmo se pode dizer dos “ fenômenos da rejeição ”, os quais além da rejeição do órgão transplantado, têm-se observado nesses pacientes “uma mudança completa de personalidade” ( a complete personality change ). E, nos casos em que se utilizam técnicas desobstrutivas coronarianas ( angioplastias ), têm-se observado alguns casos de demências cerebrais. Uma pergunta (devido ao pouco tempo de experimentação, fica ainda como pergunta): O que poderá acontecer com aqueles que se submetem à colocação de stents dilatadores coronarianos?

A outra qualidade do coração tem a ver com a “diástole”, o relaxamento cardíaco, período no qual o coração se enche de sangue e a musculatura se permeia de potássio (K), elemento revitalizante, “etérico”. Nesse momento, nesse “silêncio” de frações de segundos (menor que a sístole), o espírito se difunde no etérico revitalizante do coração, justamente para tomar consciência de si mesmo, se centralizar em si mesmo. Como o sangue se movimenta autonomamente na periferia dos capilares, chega fluindo nesse momento de relaxamento cardíaco. Essa “influência da periferia” entra no coração durante a diástole. Como se está vendo, no coração convergem duas forças. Para “bombear” o sangue, necessita-se a participação da alma que, através dos nervos, sódio e cálcio, gera a “sístole” (contração muscular). E a outra força corresponde à diástole, o silêncio, o repouso, período no qual o espírito mergulha na materialidade, no sentido de confrontrar-se consigo mesmo.

Com as capacidades da alma ( sístole e inspiração ) e do espírito ( diástole e expiração ), que se têm no “sistema rítmico” (coração e pulmão), as imagens depositadas na “memória” (no metabolismo) são combinadas, remodeladas, fundidas, com o objetivo de se criarem novos padrões pensamentais. Em seguida, por causa da “respiração”, bombeiam-se esses novos elementos pensamentais ou recordativos, via líquor cérebro-raquidiano, de volta à cabeça. Assim é que se desenvolve a “intelectualização” que, apesar de estar centrada na cabeça, recebe as informações elaboradas pelo espírito, centrado no coração. Por isso são dois modos de pensar: com o cérebro, tem-se o “pensar intelectual” e com o coração, o “pensar espiritual”.

Deve-se entender o “pensar espiritual”, como a presença de Deus em nós: “ Deus e eu somos um . Ao mesmo tempo que Deus abraça o Universo finito com seu pensamento, Ele se pulveriza em todas as suas criaturas. Ele é ora uma coisa, ora pluralidade . Deus é espírito puro (imaterial), ato puro, bem aventurado, contínuo, não pode ter extensão nem magnitude! É uma unidade indivisível, impassível, imutável, eterno e imóvel ” (Aristóteles). Estes são os princípios ou os predicados do Noûs (Deus). Por ser absoluto e perfeito, não pode mudar de pensamento. Se pensasse em algo distinto Dele mesmo, pensaria em algo menos perfeito e “logicamente” não seria mais perfeito, nem absoluto! Mas, já que Deus é a perfeição, então, o que pensa Deus? Deus pensa seus próprios pensamentos . Deus, auto-contemplativo, é um “ pensamento que se pensa a si mesmo ”. Vivencia assim, eternamente, com esse ato criador, sua absoluta perfeição. E como “Deus e eu somos um”, o nosso “pensar espiritual” é uma chispa divina em nós.

Com esta “meditação moderna” ( pensar no próprio pensar ), pode-se candidatar ao acme da curva ascendente, ao “pensar espiritual” (com o coração). Esta é a principal meta que se deve almejar a partir de hoje, para que, no futuro esse objetivo seja alcançado. Os olhos se abrirão para a “sabedoria” que vige por detrás da natureza. Ou seja, os “arquétipos” (modelos de seres criados) serão visíveis e se constatará que são, em realidade, seres espirituais (as Hierarquias ), que estão por detrás da materialidade. Esses novos parâmetros de sapiência foram trazidos por Rudolf Steiner (1861-1925) e pode-se nomear de “ discurso steineriano ”. Fecha-se assim o grande ciclo pensamental, como polaridade ao “discurso sagrado-retórico” da curva descendente. A mesma “ fonte noética ” que os antigos beberam, Steiner também saboreou e trouxe para todos, por meio da linguagem acessível da Antroposofia. Antes tratava-se somente da “contemplação” das forças divinas; agora o ser humano pode participar dessa vida espiritual, por meio de: “ imaginação , inspiração e intuição ”, forças estas que dormitam como sapiência latente dentro do homem. Ao se treinar a ciência goetheanística, abrem-se as portas para novo paradigma pensamental. Com a “ observação goetheanística ”, desenvolve-se a imaginação (isso corresponde a formar a “imagem” do fenômeno no etérico plasmador humano). Ao se treinar a “ intelectualização goetheanística ”, desenvolve-se a inspiração (isso corresponde ao esforço interno que a alma precisa fazer para conhecer algo). Depois dos argumentos dedutivos mediatos elaborados, precisa-se esvaziar a mente para “inspirar” o espiritual. Caso esses dois passos iniciais tenham sido bem aplicados, nasce, brota de dentro do pensar, a intuição , cuja finalidade é comungar com as potências espirituais.

Portanto, estamos vivendo um momento extremamente crítico da nossa evolução pensamental. O despertar do novo paradigma pensamental foi inaugurado por Goethe, mas não se concretizou na Humanidade. Apenas em hostes antroposóficas vige como fundamentação científica. Com a metodologia goetheanística , fecha-se o ciclo do pensar fenomenológico, centrado na realidade física e começa a “curva ascendente do pensar espiritual”, o qual será coroado com o discurso steineriano . Este ainda é uma promessa, uma visão muito futurista, pois ainda não se visualizam a imaginação (formar imagem no pensar), nem a inspiração , nem a intuição . No entanto deve-se almejar esse patamar pensamental, a partir de hoje, pois a Humanidade está caminhando para lá.

Dr. Antonio Marques

(*) Clínico geral com prática médica antroposófica

Compartilhe esse artigo

Artigos relacionados

HIDRO-TERAPIA KNEIPP

É um método terapêutico desenvolvido no século XIX na Alemanha, pelo padre Sebastian Kneipp (1821 – 1897), que se baseava na hidroterapia e consistia em

Leia mais »

ROUSSEAU x SCHILLER

O quê os dois filósofos iluministas trouxeram de importância para a humanidade? Qual influência nos ideais iluministas “liberté – egalité – fraternité”? E qual reflexo

Leia mais »

A LINGUAGEM

Na Escola Waldorf é ensinado às crianças as primeiras letras escritas de uma forma inédita, a partir da vivência da natureza. Ex: para conhecer o

Leia mais »

ENXAQUECA

Na cabeça os nervos sensitivos aferentes e eferentes (não existe nervo motor) formam uma rede no centro do cérebro, conhecido por “substância branca”, por causa

Leia mais »