Num passado muito remoto, o homem não tinha medo da morte, pois acreditava que iria reencontrar seus contemporâneos e viver entre seus criadores (as Hierarquias). Para os antigos indus, a vida era maya (ilusão), “o corpo físico, um amontoado mal-cheiroso de músculos e ossos” e no pós-morte estava a verdadeira vida. Para os caldeus, a glória maior era morrer em batalha, cujo objetivo era o retorno honroso para junto das Divindades. Esse modo de visão mudou totalmente com os gregos, para quem a morte era pintada como a entrada no submundo (Hades) tenebroso e escuro: “É preferível ser um vagabundo no mundo dos vivos do que um rei no mundo das sombras”. Somente em círculos pequenos é que se tinha a compreensão do “Mundo dos Espíritos”. Na Escola de Chartres (Alanus ab-Insulis), na Idade Média, onde imperava o pensamento platônico dentro da Igreja, os sacerdotes confabulavam que, se a pessoa permanecesse com “pensamentos mundanos”, ao adentrar no mundo espiritual, esses pensamentos iriam se afunilando, até sumir. Era preciso retornar à Terra (reencarnar), para treinar pensamentos mais nobres e espirituais, no sentido de verdadeiramente poder habitar de novo o “Mundo dos Espíritos”. Também entre os Escolásticos (Tomás de Aquino), sabia-se que “a parte mais nobre da alma, assim como o espírito, são incorruptíveis, ou seja não morrem. Somente a parte inferior da alma (sede dos instintos e paixões) e o corpo físico são corruptíveis (morrem)”.
Sempre o homem teve interesse em perscrutar além do portal da morte. Para isso praticava a iniciação nos “templos de mistérios”, cujo objetivo era ascender ao Devakan (“Mundo dos Espíritos” em sânscrito, língua sagrada da antiga Índia), para se encontrar com o Espírito de Shiva (por nós conhecido como o Verbo ou o Deus-Filho ou o Cristo). Desse encontro, lhes abriam os “olhos clarividentes”, no sentido de descortinar toda a evolução humana, através de etapas cósmicas planetárias. Desde a antiga Índia (Vedas) sabia-se que o nosso planeta, havia passado por várias fases evolutivas. Inclusive Orígenes, padre da Igreja (185-252), pregava a eternidade da matéria e assim falava: “Dos fragmentos de nosso mundo destruído, Deus fará outro, e deste, outros mais, cuja história dependerá, para cada um, das livres decisões dos seres razoáveis que neles estarão contidos”. Certos textos dele dão a pensar que os mesmos espíritos criados habitam esses universos sucessivos e participam de sua história. Nesse sentido são conhecidas quatro etapas reencarnatórias da Terra:
1a) Antigo Saturno, período no qual ocorreu a criação do corpo físico.
2a) Antigo Sol, em que ocorreu a criação do corpo etérico.
3a) Antiga Lua, quando ocorreu a criação da alma.
4a) nossa Terra, criação do espírito humano.
Só que, com o correr dos tempos, a “vida da alma” foi se atrofiando e quase nada carregamos desse portentoso patrimônio espiritual do passado. No período greco-latino, a iniciação espiritual era realizada através do batismo. Na imersão na água, o “etérico” saía um pouco do corpo e propiciava uma “clarividência” ao batizado. João Batista realizava esse processo no sentido de renovação da vida interior e para que essa “clarividência” pudesse ser levada como impulso renovador para além túmulo. Mas aconteceu um fato inédito no batismo: ao invés de servir de porta de entrada ao mundo espiritual, serviu de porta de descida do Deus-Filho (o Cristo) ao nosso orbe terrestre, para viver por três anos no corpo de Jesus de Nazaré. “Ao ser batizado todo o povo e quando Jesus depois de batizado, rezava, abriu-se o céu e desceu sobre ele o Espírito Santo em forma corpórea, como uma pomba, ouvindo do céu uma voz: ‘Tu és meu Filho amado, de ti me agrado”‘ (Lucas 3,21). Em verdade, o Nazareno, ao ser imergido no Jordão, se solta da materialidade e volta ao “Mundo dos Espíritos”. Nesse momento se imiscui o Ser Supremo nesse “cálice” especialmente preparado para Ele, pelas gerações israelitas.
Mas, para aquele que não se preparou espiritualmente e “pecou” na estrada da vida, fica reservada a “doença”, como forma de resgate e de purificação. É claro que, fisiologicamente, toda enfermidade que não tenha um motivo acidental externo, tem como causa a desordem do “corpo etérico”. Mas se o corpo etérico está doente, é porque a “alma” não está em seu estado normal. Ou seja, toda doença é uma “iniciação anímica errada, deturpada”. Como conseqüência, atrai forças perturbadoras e demoníacas. Por causa disso é que a “medicina sagrada” do antigo Egito era realizada pelos “médicos-sacerdotes”, nos templos de cura (Serápis), sem a utilização de medicamentos. Utilizava-se somente o “sono templário” (pode-se entender hoje como “sono hipnótico”): O paciente era submetido a um jejum progressivo de três dias, no sentido de debilitar artificialmente a consciência, culminando no último dia no “sono no templo”. Este consistia em dormir onde havia dormido uma “sacerdotisa”. À noite, o espírito (Ká) saía do corpo e visualizava as forças maléficas obsessivas que porventura estariam vampirizando-o. Do mesmo modo como na Atlântida, civilização anterior a esta nossa, o homem recebia os influxos espirituais durante o sono, através da “clarividência”, os antigos médicos egípcios assim também procediam. Durante o sono, manipulavam as “imagens” que surgiam ante a “alma do paciente”, de modo a devolver a “saúde psicossomática”.
Como se pode observar, os dois processos citados são os mesmos, tanto faz para o “batizado” como para o “doente”. Vivência do “divino” ou confrontação com o “mal”, através da “clarividência induzida”. Na nossa vida comum, também realizamos esse processo todo dia, quando “dormimos”. O sono representa a “morte” em pequena escala. O corpo físico dorme, mas permanece ligado ao corpo etérico, para ser revitalizado por este. A alma e o Espírito afrouxam-se do corpo e subdividem-se em dois: as partes superiores (mais nobres) vão para o “Mundo dos Espíritos” e as partes inferiores permanecem perto do corpo, para zelar por este. Só que tudo isso permanece na mais profunda inconsciência. Por isso a Bíblia diz: “Ao homem foi dado conhecer somente o bem e o mal; e não o conhecimento da vida”. Porque essa parte deve ficar no mais profundo inconsciente. Somente após a passagem através do portal da morte, pode o homem acompanhar conscientemente esse desenlace e conhecer o processo de formação do próximo corpo, o qual será utilizado na próxima vida.
Não se deve imaginar que o homem passe por um hospital ou coisa parecida após a morte, pois com esse tipo de pensamento mundano se está “materializando o mundo espiritual”. E o pior pecado é imputar ao mundo espiritual algo mais refinado do que aqui na Terra, como se fosse um Changrilá. Em verdade, o que acontece nesse primeiro momento após a morte corresponde ao que os acidentados graves relatam: “A vida passa na minha frente, como um filme, de frente para trás”. Isso corresponde à “vivência da memória”, que fica retida no corpo etérico (na nossa vitalidade). Só que, no falecido, esse processo leva três dias, até passar todo o “filme” da sua vida, do último fato para o primeiro. Finalmente esse processo termina quando o etérico se dissolve no Cosmo periférico. Somente o Cristo, ao passar pela morte na cruz, reteve seu corpo etérico e, após o “terceiro dia”, apareceu como “ressurreto” aos seus discípulos. Esse “novo corpo” será a nossa vestimenta na “Nova Jerusalém”, após o Apocalipse, quando esta Terra morrer e renascer de novo ou “ressuscitar” com uma substancialidade mais refinada. Por isso se diz que, nesta Terra, vigora a reencarnação (voltar de novo ao corpo físico) e, na nova fase planetária em que viveremos (Nova Jerusalém ou futura fase planetária Jupiteriana, como denomina a Antroposofia), não teremos um corpo físico como este nosso, mas um corpo mais refinado, o qual foi preparado pelo Cristo. Nesse futuro, “a morte já não existirá nem haverá luto nem pranto nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Apocalipse 21,4).
Em seguida ao processo da morte física e do dissolver do etérico, como se citou, o falecido (com espírito e alma) passa por uma fase de “purgação dos pecados da alma”, no “Mundo das Almas” ou Kamaloca (em sânscrito) ou por nós conhecido como purgatório, antes de entrar no “Mundo dos Espíritos”, propriamente dito. O objetivo, como o nome está dizendo, é desvencilhar-se pouco a pouco das relações terrestres e “purgar” (limpar) os pecados anímicos. Como não existem mais órgãos sensoriais, o que se faz é somente “recordar”. A alma é obrigada a realizar “retrospectivamente” o que vivenciou na Terra, e isso corresponde a 1/3 da sua velha vida física. Deve-se imaginar o processo de “desencarnação”, como ascensão ao céu, passando pelas esferas planetárias, como os “antigos centros de mistérios” (e a Igreja) relatavam. Essa vivência no “Mundo das Almas” é ratificada por Rudolf Steiner (no livro Teosofia, 2002, p.76): “Devemos distinguir no mundo anímico três regiões inferiores e três superiores, coligadas por uma quarta zona intermediária: região das ânsias ardentes, região da suscetibilidade fluida, região dos desejos, região de prazer e desprazer, região da luz anímica, região da energia anímica ativa, região da vida anímica”. Essas “regiões de expiação dos pecados” (ou purgatório) têm relação com as esferas planetárias do nosso sistema solar, pois no fundo correspondem verdadeiramente ao que sempre a Igreja se referia no passado: ascensão ao céu. A primeira “região” corresponde à faixa compreendida entre a Terra e a circunvolução da Lua. Como os nomes sugerem (ânsias ardentes, desejos, prazer e desprazer), o falecido quer usar os olhos para ver, os ouvidos para ouvir, mas não existem órgãos sensoriais. Isso sem falar dos “vícios”, os quais tornam-se torturantes, pois não se consegue realizá-los. Caso consiga superar essa primeira fase purgatorial, entra na esfera de Mercúrio, na qual ainda fica preso aos “pensamentos” (e estes também necessitam do cérebro). Caso consiga vencer mais essa etapa, chega à esfera de Vênus, denominada de “Região da energia anímica ativa”. Os impulsos religiosos, os quais promoviam o convívio social e o relacionamento com outras almas, são reformulados para futuro retorno. Somente ao entrar na esfera do Sol, se dá por terminada a sua última encarnação. Olha retrospectivamente aquele velho mundo, com saudades para voltar e fazer “as coisas” melhores.
Somente após passar por essas regiões no “Mundo das Almas” (purgatório), é que se adentra no “Mundo dos Espíritos”. Este é chamado de Devakan (em sânscrito) ou “céu”, o mundo divino. O ser humano penetra, então, na esfera de Marte (1a região do “Mundo dos Espíritos” ou 1a região do Devakan), mais espiritualizado e com a compreensão dos “arquétipos” viventes na Terra (estes são, em realidade, entidades espirituais reais). Em seguida percorre a esfera de Júpiter (2a região do Devakan ou Região Oceânica, segundo Steiner), na qual se liberta do último credo religioso e abraça a nova religião, como preparação para próxima vida terrestre. Passa pela esfera de Saturno (3a região do Devakan ou Região Aérea, segundo Steiner), na qual é preciso desenvolver a consciência de si mesmo, para poder finalmente se lançar ao “céu estrelado” (4a região do Devakan ou Mundo dos Espíritos, propriamente dito). Platão é magistral nesse relato: “As almas partiram dali, cada uma para seu lado, para o alto, a fim de nascerem cintilando como estrelas” (República, 1949, p.499). Essa última região da Esfera Espiritual (o céu), relata Steiner, é completamente estranha às nossas concepções.
Depois de um certo tempo no “Mundo dos Espíritos”, para se espiritualizar, o que Platão diz demorar “mil anos” (República, 1949, p.489), o ser humano retorna à velha escola terrestre. Da periferia do Cosmo-Espiritual, envolvido pelas forças etéricas (vitais), olha aquele pontinho no centro do Universo (a nossa Terra), onde deverá se “reencarnar”, por uma questão de necessidade (ananké) e para purificação (karma). Durante o tempo que transcorre entre a morte e o novo nascimento, o ser humano participa (de uma certa maneira) da formação de seu novo corpo físico e engendra em sua alma as disposições para ver o mundo de uma maneira mais espiritual na próxima vida física (ora como homem ora como mulher). Como vivemos numa época conturbada, cada vez mais as pessoas levam as disposições materialistas para o mundo espiritual, o que poderá resultar no futuro, em formações de corpos físicos imperfeitos e “doentes”. Isso é o que acontece àqueles que não acreditam na vida pós-morte. Como não desenvolveram aqui na Terra a disposição interna para aceitar o Mundo Espiritual, ao adentrar no portal da morte, tudo fica “obscuro, tétrico e solitário”. Para “ascender aos céus”, é pré-requisito indispensável se interessar, enquanto aqui na Terra, pela questão espiritual, senão torna-se presa fácil das potências do mal. E como Platão já aduzia, “o mal só existe na esfera sub-lunar” (ou seja, aqui na Terra). Ou seja, não há “ascensão através das esferas planetárias” para os que se fixam no ambiente terrestre, no materialismo. Nesse caso, não receberão das Hierarquias as forças necessárias para elaborar o próximo corpo físico. Este nascerá, na próxima encarnação, deformado ou doente. Somente após a passagem de novo pela Terra, pelo sofrimento, é que a alma poderá despertar para o mundo espiritual.
Eis o que o guerreiro Er, tido como morto, vivenciou no céu: “Ele viu as almas que desciam do céu, em estado de pureza e outras que subiam da terra, cheias de lixo e de pó. Estas faziam perguntas às outras o que se passava no além, e as que vinham do céu, sobre o que sucedia na terra. Estas escolhiam a sua vida e a maior parte fazia a sua opção de acordo com os hábitos da vida anterior”(Platão, República, 1949, p.488-9).
Dr. Antonio Marques